São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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+ brasil 505 d.C.

O filósofo relembra a convivência intelectual com o crítico Roberto Schwarz desde os anos 1950 e aponta suas divergências teóricas

Retoques a uma sereia desmistificada

Bento Prado Jr.

Devo dizer, antes de mais nada, quão feliz me sinto por poder participar desta justa homenagem a meu velho amigo Roberto Schwarz. Felicidade que não deixa de ser sombreada por um mínimo de inquietação. Com efeito, que poderia eu dizer de pertinente, nesta ocasião, sem limitar-me à rememoração de uma longa amizade? Depois de muito meditar, acabei por decidir, sob o título acima inscrito, retomar criticamente meu texto de 1968, que tentava examinar a primeira obra de meu amigo. O título é roubado a André Gide que, depois de publicar seu "Retour de Russie" [Retorno da Rússia], francamente apologético do universo soviético, escreveu seus "Retouches au Retour de Russie" [Retoques ao Retorno da Rússia], em que a apologia cede lugar a um distanciamento crítico. No meu caso, aqui e agora, trata-se sempre de rememorar um momento de nossa convivência intelectual. Mas de uma rememoração que é exatamente uma "Erinnerung", no sentido hegeliano da palavra, isto é, uma reinteriorização, uma reincorporação do passado que não deixa intacto o presente, pois implica em "Aufhebung" -que, no mesmo vocabulário, significa, ao mesmo tempo, superação, cancelamento e conservação. Processo essencial do devir do espírito que é sempre superação de si mesmo e autocrítica. Não se trata de dizer que nada valia no ensaio que consagrei a "A Sereia e o Desconfiado". Trata-se antes de mostrar como o texto que escrevi, há quase 40 anos, está efetivamente distante de mim, como jamais o reescreveria tal e qual, mas, sobretudo, trata-se de sublinhar algumas ambigüidades do texto que se prestaram a uma leitura equivocada. Ao fazê-lo, completo uma tarefa já iniciada, pois no início dos anos 80 (há uns 20 anos), por ocasião de uma iniciativa da Unesp, em Araraquara, tive a oportunidade de fazer, numa conferência largamente improvisada, uma autocrítica de outro escrito meu de 1968, consagrado, a pedido da revista italiana "Aut Aut" (em um número que contou também com a colaboração de Roberto Schwarz), ao "Problema da Filosofia no Brasil". No texto original, baseado em parte em Antonio Candido e Michel Foucault (A. Candido, ao ler o texto, acrescentou, com o humor de sempre: "Michel vai gostar muito do paralelo sugerido") e sobretudo no clássico "método de análise estrutural" de Martial Guéroult, distanciava-me levemente de meu mestre João Cruz Costa em nome de um vago anti-historicismo. Valia-me, para tanto, do privilégio concedido por A. Candido à idéia de sistema literário e ao privilégio, concedido por Foucault, à idéia de estrutura: no segundo caso, é claro, eu seguia passivamente a moda da filosofia francesa da época. Falando em Araraquara, insisti no inadequado do amálgama Candido/Foucault e declarei que meu texto da "Aut Aut" era cego para a importância da história social na história da filosofia (sem jamais, todavia, fazer da história da filosofia uma simples "história das idéias").

Estatuto da linguagem
É a mesma operação que é preciso levar a cabo a propósito do ensaio consagrado ao livro de Roberto Schwarz. A moda de então, na filosofia francesa, levou-me a utilizar novamente Foucault (que, aliás, não deve ser condenado às trevas exteriores, longe disso, embora tenha comemorado a tomada do poder no Irã, por Khomeini, com um ensaio intitulado "O Retorno do Espiritual em Política"). E a censurar, no excelente escritor (cujo livro insistia eu -roubando uma metáfora foucaultiana, contra "as moscas cegas da reflexão", que diziam que era mal escrito- que era escrito como um poema), uma certa indeterminação quanto ao estatuto da linguagem literária (pelo menos da literatura dos séculos 19 e 20, já que o estatuto dos matemas e dos poemas varia muito ao longo da história da literatura ocidental -vide o caso de Lucrécio). Insistência ou mania de filósofo, mais do que crítico literário, que levaria alguns a crer que, na ocasião, eu aderia a alguma forma de "absoluto literário" ou à tese (na moda então) da "intransitividade do verbo poético", que testemunhava uma espécie de mallarmesismo muito tardio e, digamos, fora de lugar. Na verdade, eu e Roberto não estávamos, creio, tão distantes um do outro. Eu dizia, reconheço, que na literatura encontramos uma "verdade que não é do mundo", mas acrescentava logo a seguir: "Mas que pesa, no entanto, e que ilumina". Com isso, queria insistir no fato de que há uma espécie de "verdade literária" que precede, de algum modo, a verdade das chamadas ciências sociais. Roberto recentemente dizia, em entrevista, se não me engano, coisa muito parecida. E não é verdade que o próprio Marx afirmava que os romances de Balzac, a despeito do conservadorismo do autor, eram mais reveladores do essencial da história social da França do século 19 do que a obra "científica" dos historiadores? Tal idéia, já presente em meu ensaio antigo, foi retomada mais recentemente para sublinhar o caráter excepcional da obra de crítica literária de nossos maiores: Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido. Talvez houvesse apenas um ponto muito tópico de discordância real. Falo da interpretação que Roberto dá do filme "Oito e Meio", de Fellini. A despeito de acertos formidáveis que sublinho em meu ensaio, continuo achando que, ao contrário do que diz Roberto, no filme, a rememoração da infância não é apenas uma superfície onde transparece o essencial: a transformação do cinema em indústria. Continuo achando que tal visão é muito parecida com a do duro crítico contratado pelo personagem central e que é enforcado no meio do filme ou na imaginação do diretor hesitante. Eu brincava no texto, dizendo que jamais Roberto poderia sair de dentro do filme e escrever sobre ele porque já fora enforcado dentro do próprio filme: como um soldado morto em 1941 jamais poderia escrever a história da Segunda Guerra Mundial.

Juventude Socialista
Mas, para os mais jovens, talvez fosse interessante relembrar a gênese do meu texto. Ele me foi solicitado pela redação da revista "Teoria e Prática", que pensava promover, como indica seu título, crítica da cultura e crítica política de uma perspectiva revolucionária. Por que o pedido? Amigo dos editores da revista, eu não fazia parte dela, embora participasse freqüentemente das reuniões da comissão editorial. Mas ninguém ignorava nossa antiga convivência intelectual -esse misto de cumplicidade (jamais do ponto de vista da prática autopromocional, tão freqüente entre poetas e literatos) e de polêmica sempre virtual. Tratava-se, para a revista, de trazer à luz, de incentivar o debate entre candidatos a escritor que partilhavam ideais políticos; ou entre pessoas que podiam dizer: "Socialismo, sim! Mas com Proust e Kafka!".
De fato, grande era a cumplicidade. Nós nos cruzamos pela primeira vez na Juventude Socialista, em 1955 (onde fui tesoureiro, o que dá uma idéia da eficácia da organização..., mas onde podíamos ouvir versões do marxismo livres do dogmatismo stalinista, como nos discursos de Paul Singer e Maurício Tractenberg). Reencontramo-nos, em 1957, no saguão da Biblioteca Municipal, quando Roberto veio falar-me de dois poetas: Carlos Drummond de Andrade (que já era minha maior paixão literária) e Gottfried Benn, poeta alemão de que jamais tinha ouvido falar.
Em 1957 ou 1958, ouvíamos juntos ("chez" Jacó e Gita Guinsburg) os cursos de seu mestre Anatol Rosenfeld, que logo em seguida organizou, conosco e colegas minhas, em casa de Lúcia Seixas (que logo se tornaria Lúcia Prado), um seminário de um ano sobre "A Morte em Veneza", de Thomas Mann. De seu lado, na segunda metade dos anos 1950, Roberto descobria, meio por acaso, na livraria Herder, os autores da Escola de Frankfurt, de que ninguém falava então.
Na mesma ocasião, eu descobria, também por puro acaso, na livraria Francesa, o livro de Alexandre Kojève sobre Hegel. Simultaneamente, pois, redescobríamos Hegel, que impregnaria nossas imaginações fascinadas pela articulação (ou desarticulação) entre literatura e política.
Era normal, assim, que me solicitassem o texto em pauta, para melhor mostrar a identidade entre a identidade e a diferença, para guardar o vocabulário de Hegel. Uma diferença que se mostrava na tensão entre a germanofilia de Roberto e minha francofilia (tensão pouco grave, já que, como dizia o Lebrun, desde Madame de Stäel os franceses passaram a pensar um pouco à maneira alemã). Lembro-me (para acrescentar uma anedota) que em 1964 apresentei Paulo Arantes a Roberto Schwarz; logo a seguir, Paulo veio me dizer, com ironia, que se sentia como o Hans Castorp de "A Montanha Mágica", dividido entre dois mestres. A que acrescentei: nesse caso, sou o Settembrini, porque, embora reconhecendo a grandeza da obra de Lukács, não gostava de seu livro "A Destruição da Razão".
Aliás, encontrando-me recentemente com seu discípulo, hoje radicado na Inglaterra, István Mészáros, disse-lhe que escrevera algures que esse livro era uma má obra de um grande autor. O antigo discípulo redargüiu: "Isso porque você ignora as concessões que teve de fazer à polícia política, para poder publicar o livro!". Descobri então que não se tratava de um mau livro de um grande autor, mas de uma "obra coletiva".
Depois de então, envelhecemos ou "amadurecemos". Roberto escreveu seu Machado e continua a escrever. De minha parte, recomecei meu itinerário de pesquisa, talvez condenado a retornar a meu ponto de partida. De qualquer maneira, hoje escreveria um ensaio bem diferente sobre "A Sereia e o Desconfiado". Um ensaio certamente mais compreensivo, que permitiria mais um recomeço de conversa. De uma conversa que nunca deixou de recomeçar.


Nota
Este texto foi lido por ocasião do encerramento de um ciclo de estudos sobre a obra de Roberto Schwarz realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em agosto passado.


Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor emérito da USP. É autor de "Presença e Campo Transcendental" (Edusp).


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