São Paulo, quarta-feira, 30 de junho de 2010

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MARIO MESQUITA

Federalismo e a crise europeia


O programa brasileiro de ajuste das finanças estaduais poderia ser replicado no contexto europeu?


UMA ECONOMIA continental, com grandes diferenças regionais, enfrenta problemas fiscais disseminados geograficamente, potencializados pela fragilidade no sistema bancário. Essa descrição se aplica tanto à atual situação na zona do euro quanto ao Brasil dos anos 1990.
A solução desse problema, no caso brasileiro, foi a federalização das dívidas estaduais, assumidas pela União (a taxas subsidiadas), por meio de compromissos que levaram os Estados, anteriormente em crônico desequilíbrio fiscal, a se comprometerem contratualmente com programas de ajuste fiscal de longo prazo.
O formato padrão dos contratos de renegociação estabelecia um limite de comprometimento da receita estadual que seria alocado para o serviço da dívida junto ao governo central (em geral, 13%). As dívidas foram alongadas para 15 ou, mais frequentemente, 30 anos, com encargos de 6% ao ano, mais a variação do IGP-M. Os contratos previam também regras claras e transparentes de punição em caso de inadimplência: a retenção praticamente automática das transferências do Tesouro.
Não há dúvida de que os contratos de renegociação de dívida constituíram incentivo fundamental para o ajuste fiscal a nível subnacional e, dessa forma, em precondição para a consolidação da estabilidade macroeconômica.
A questão é: poderia o bem-sucedido programa brasileiro de ajuste das finanças subnacionais ser replicado no contexto europeu? Há certamente paralelos importantes, embora a situação europeia seja mais complexa.
Em primeiro lugar, a Europa avançou muito no federalismo monetário, mas não no campo fiscal. Não há, em resumo, uma União que poderia assumir a dívida dos governos mais frágeis do continente.
Esse obstáculo pode, contudo, ser superado pela utilização do recém-criado European Financial Stability Facility, ou Fundo Europeu de Estabilidade Financeira. O Fundo Europeu poderá captar até 440 bilhões para emprestar a governos da zona do euro que estejam enfrentando dificuldades. Como as emissões do Fundo Europeu serão garantidas por todos os membros da união monetária, inclusive as economias mais sólidas, terão provavelmente classificação de risco elevada -essas emissões podem, por sinal, se mostrar atraentes para gestores de reservas internacionais.
O Fundo Europeu é, portanto, um mecanismo viável de "federalização" da dívida das economias mais frágeis da zona do euro. Já a administração dos empréstimos do fundo tende a ser mais complexa do que no caso brasileiro. Em particular, a suspensão das transferências intraeuropeias enfrentaria fortes resistências políticas e, possivelmente, contestação judicial. Por outro lado, os empréstimos do Fundo Europeu serão condicionados à adoção de programas de ajuste fiscal similares aos dos programas com o FMI, sob o que os ministros das Finanças europeus descreveram como regime de "estrita condicionalidade".
Uma limitação mais nítida se refere ao tamanho do fundo, insuficiente para adquirir toda a dívida dos países atualmente em dificuldade -a dívida externa bruta dos governos da Espanha, da Grécia e de Portugal chegava a cerca de 611 bilhões ao final de 2009.
Um aspecto de economia política dificultaria uma eventual expansão do Fundo Europeu. Trata-se exatamente da diferença na performance fiscal das economias europeias: no caso brasileiro, não havia uma Alemanha, fiscalmente virtuosa, a transferir recursos para uma periferia supostamente perdulária. Ao contrário, os maiores Estados da Federação eram também os que padeciam de problemas fiscais mais severos. Esse nivelamento por baixo da performance fiscal facilitou politicamente a aprovação de todo o arcabouço legislativo da renegociação das dívidas estaduais e municipais.
De qualquer forma, a crise da dívida e a resposta das autoridades do continente mostram a tendência de aumento da integração fiscal na Europa, a despeito das reservas que ' os políticos e o público alemães possam ter quanto a esse projeto.



MARIO MESQUITA, 44, doutor em economia pela Universidade de Oxford, escreve quinzenalmente, às quartas, neste espaço.


AMANHÃ EM MERCADO:
Márion Strecker



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