São Paulo, quinta-feira, 01 de janeiro de 2009

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ARTIGO

Apenas uma ilha que luta para sobreviver

JON LEE ANDERSON
ESPECIAL PARA A FOLHA

No 50º aniversário da Revolução Cubana, meu pensamento retorna a uma conferência à qual assisti em Havana no verão de 2005. Intitulada pomposamente "Encontro Internacional Contra o Terrorismo, pela Verdade e a Justiça", a intenção era que funcionasse como resposta à seletiva "guerra ao terror" do governo Bush.
Pouco tempo antes, os EUA tinham prendido, por delitos ligados à imigração, um ex-agente da CIA, nascido em Cuba, que se acreditava ser responsável por idealizar uma série de atos hediondos de terrorismo contra Cuba, incluindo a explosão de 1976 num avião cubano, que deixou 73 mortos. Mas os EUA tinham anunciado que não o julgariam por terrorismo, o que provocara revolta entre os cubanos. Cuba também tinha sido identificada pelo governo Bush como um dos países do chamado "eixo do mal". Na reunião em Havana, Fidel Castro também queria chamar a atenção para a hipocrisia dos ianques. Os convidados vieram de todo o mundo -sobreviventes de guerras e rebeliões passadas e líderes de movimentos políticos que, de modo geral, existiam em oposição direta a Washington e seus decretos imperiais. Um depois do outro, os palestrantes se levantaram para denunciar uma litania de atos atrozes de violência (podia-se dizer que fosse terrorismo) cometidos ao longo dos anos pelos Estados Unidos ou forças agindo em seu nome. Todos prestaram as homenagens devidas ao homem saudado como seu "paterfamilias" coletivo, o eixo central de sua constelação revolucionária: o incendiário, absorvido, às vezes sonolento mas eterno ícone Fidel, presente durante toda a conferência de três dias.
Ao final do evento, foi lançado um chamado pela formação de um "tribunal hemisférico contra o terror e em defesa da humanidade" que, algum dia, processaria Henry Kissinger, George H.W. Bush e seus filhos Jeb e George W. Bush, entre outros, por um sequência enorme de crimes históricos.

"Sede de justiça"
Foi um teatro político extraordinário, a tentativa de Fidel de encenar um "pronunciamiento" em estilo espanhol em prol das vítimas oprimidas do capitalismo e de reafirmar, como ele vem fazendo há anos, a superioridade moral de Cuba sobre os EUA. Fidel chegou a declarar em tom portentoso "a humanidade tem sede de justiça" -uma frase que pouco depois seria vista em outdoors espalhados por Havana.
Três anos mais tarde, muita coisa mudou e muita coisa não mudou. Como tantos outros projetos que cativaram a imaginação de Fidel ao longo dos anos, o tribunal parece estar destinado a não se realizar. Para Fidel, sua concretização provavelmente nunca chegou a ser uma meta real; o que importava era a audácia da proposta. Para um líder obcecado com o poder e a hegemonia dos EUA, a ideia tinha sido mais um ato de rebelião contra "o império" que vem sendo tanto o alvo principal de sua ira quanto a razão de ser de sua vida. De fato, a história da revolução de Fidel é feita de muitos outros enfrentamentos desse tipo, alguns dos quais, é bom reconhecer, muito mais transcendentais do que a conferência à qual assisti: acontecimentos como a invasão da Baía dos Porcos, a Crise dos Mísseis, a fuga de Mariel e a saga de Elián González. Cada um desses incidentes teve, porém, uma característica semelhante de Davi versus Golias e envolveu um duelo desigual no qual Fidel enfrentou os Estados Unidos e emergiu vitorioso, na medida em que ele e sua revolução sobreviveram intactos.
Foram façanhas como essas que conferiram a Fidel uma visão tão exaltada de sua missão na vida e do papel de sua ilha no mundo. Mas a Guerra Fria terminou algum tempo atrás, e a relevância de Cuba no esquema maior das coisas também diminuiu. A conferência de 2005 sobre terrorismo foi, de certo modo, uma prova dolorosa de que as batalhas realmente grandes, pelo menos para Fidel, tinham ficado para trás, e que tudo o que restava eram as simbólicas. A história dos primeiros 50 anos da Revolução Cubana é também a história das batalhas interminavelmente proclamadas por Fidel. Houve, em primeiríssimo lugar, a batalha para a implantação do socialismo, depois a batalha para consolidar o socialismo, e então, após a queda do comunismo, a batalha para resgatar o que ainda restava dele em Cuba. Além de todas essas batalhas sempre houve aquela que impulsionou todas as outras: a batalha pela soberania de Cuba ou pela defesa de sua honra nacional. Não importa pelo quê tenha sido travada realmente a batalha real, tudo isso cobrou um custo pesado de Cuba.

Maltrapilho
Quando nos afastamos do brilho envolvente dos discursos de Fidel e da sedução retrôchique da revolução e dos hotéis de beira-mar da ilha, com seus mojitos, suas mulatas e seus ritmos, como o son e a salsa, Cuba é, na verdade, um lugar triste e maltrapilho. Sejam quais forem os direitos que conquistaram, e por mais bem instruídos ou saudáveis que sejam -graças à revolução e a Fidel-, para a maioria dos cubanos o dia-a-dia é uma luta interminável pela sobrevivência. Dois anos atrás Fidel adoeceu e afastou-se dos olhares do público, tendo se mantido afastado desde então. Em fevereiro passado, ele abriu mão formalmente de seus deveres públicos para abrir o caminho para seu irmão mais jovem, Raúl, que hoje é o presidente de Cuba. Mas Fidel continua a desfrutar de grande autoridade moral e, também, continua a manifestar-se com frequência em cartas abertas que escreve para serem publicadas no jornal governamental, o "Granma". Ele nem sempre concorda com Raúl, que avança com cautela, mas já assinalou sua disposição em pôr fim aos aspectos mais onerosos do pendor de Fidel pela engenharia social. Ele autorizou, por exemplo, os cubanos a terem celulares. Raúl também vem falando da necessidade de se permitir que os cubanos ganhem dinheiro. Essa sucessão política atenuada deixou o país numa espécie de limbo; ainda não há transição política acontecendo em Cuba, e desconfia-se que isso não vai acontecer enquanto Fidel viver. Mas está claro que algumas mudanças estão acontecendo.

Apenas uma ilha
Diferentemente de seu irmão mais velho, Raúl parece compreender que o destino futuro de Cuba é ser menos do que a dobradiça que faz o resto do mundo girar, e que, cedo ou tarde, o país terá que enfrentar a realidade de que é apenas mais uma ilha caribenha que luta para sobreviver. Poucos dias atrás ele avisou seus compatriotas sobre medidas de austeridade que estão por vir; os pacotes especiais de férias e outros benefícios que vinham sendo dados aos funcionários públicos serão cortados no novo ano, porque as contas não dão conta do custo. "Dois mais dois nunca dá cinco", disse Raúl. "Sempre darão quatro." Outras mudanças podem finalmente estar prestes a acontecer no impasse com os EUA, que já dura tantos anos. Raúl já declarou que está disposto a conversar com o presidente eleito americano Barack Obama, que, por sua vez, já assinalou sua disposição em rever a política dos EUA em relação a Cuba. Também Fidel já anunciou que é favorável a tais conversações. Tudo considerado, parece justo esperar que Cuba -tão pequena, tão fraca- possa agora ter a chance de realizar uma sucessão política ordeira e pacífica que possa ajudar a garantir a estabilidade e prosperidade de seus cidadãos. E, claramente, para que isso aconteça, parece evidente que se deve pedir aos EUA -tão grande, tão poderoso- que faça a coisa certa e ponha fim ao embargo que impõe a Cuba desde 1961. Se isso acontecer, isso significará que a cortina vai finalmente se fechar sobre um dos épicos mundiais mais fascinantes e que vem durando mais tempo -um drama da vida real encenado por personalidades extraordinárias, no qual o país mais poderoso do mundo fez o papel de opressor de um dos menores e mais fracos. Mas a sensação que se tem é que já é mais do que hora de isso acontecer.


O jornalista americano JON LEE ANDERSON é autor de "Che Guevara - Uma Biografia", entre outros livros.


Tradução de CLARA ALLAIN



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