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Com "eurocético" no poder, Praga assume chefia da UE
País, um dos únicos que não ratificou Tratado de Lisboa, terá presidência rotativa do bloco
Presidente que se afirma "dissidente da UE" contrasta com francês Sarkozy, que deu nova relevância a cargo em um semestre de crises
DE GENEBRA
A Europa começa o ano com
uma mudança de estilo radical.
Passado o furacão Nicolas Sarkozy, a Presidência da UE
(União Europeia) vai para o
país presidido pelo mais "eurocético" líder do bloco, o tcheco
Václav Klaus. Seu desprezo pela correção política causa calafrios em Bruxelas e crescentes
divisões domésticas.
As divergências entre Klaus e
o primeiro-ministro Mirek Topolánek em torno dos méritos
da integração europeia ameaçam frear o esforço deflagrado
pela França para consolidar
uma resposta coordenada da
UE à crise financeira.
Para aumentar o constrangimento, a República Tcheca é
um dos dois únicos países da
UE que ainda não ratificaram o
Tratado de Lisboa, a reforma
constitucional do bloco -ao lado da Irlanda, que prometeu fazer novo referendo neste ano.
A responsabilidade que os
tchecos assumem hoje foi amplificada pela frenética diplomacia francesa à frente da UE
no último semestre.
Com a hiperatividade política que levou o jornal "Le Monde" a classificá-lo de "onipresidente", Sarkozy soube aproveitar o vácuo criado por um governo americano em fim de
mandato para conferir visibilidade e liderança que há anos a
UE não demonstrava.
Discussões sobre estilo à parte, poucos negam que Sarkozy
teve sucesso na condução da
política europeia através da sucessão de crises que enfrentou
nesses seis meses. Mesmo na
França, onde as políticas internas de Sarkozy são rejeitadas
pela maioria, uma pesquisa recente mostrou que quase 60%
da população aprova a atuação
do país na liderança europeia.
A presidência francesa da UE
teve início em meio à tempestade causada pela rejeição irlandesa ao Tratado de Lisboa, poucos dias antes. Menos de um
mês depois, tropas russas invadiram a Ossétia do Sul. E, em
setembro, veio a falência do
banco americano Lehman Brothers, que deu início à fase mais
aguda da crise financeira.
Sarkozy negociou um cessar-fogo entre a Rússia e a Geórgia;
obteve da Irlanda o compromisso de realizar um novo referendo; articulou a reunião do
G20 em Washington sobre a
crise financeira; e ainda convenceu os líderes da UE a assinarem um acordo para reduzir
em 20% as emissões de dióxido
de carbono até 2020. No fim da
sua gestão, tentou promover
trégua entre Israel e o Hamas.
Para Jean-Dominique Giuliani, diretor da Fundação Robert Schuman, centro de estudos dedicados à UE, a atuação
de Sarkozy foi "brilhante" e estabeleceu um novo paradigma.
"A Presidência do Conselho
da UE deixa de ter uma função
unicamente administrativa ou
logística", opinou Giuliani em
artigo sobre o efeito da liderança francesa. "Daqui em diante,
ela terá de prover os meios para
produzir avanços -e também
as decisões políticas."
Mas o radar político detecta
perigos. Em edição recente do
"Libération", o colunista Alain
Duhamel alertou para a "ameaça tcheca" que rondará a UE
nos próximos seis meses.
"Grandes homens também
existem em pequenos países",
escreveu. "Infelizmente, não é
o caso do governo tcheco."
Para o analista, embora não
aspire a ser o "coveiro das esperanças europeias", como Václav Klaus, o premiê Topolánek
"carece de experiência e autoridade" para exercer a liderança
do bloco, sobretudo nesses
tempos de crise.
Iconoclasta
Klaus é um iconoclasta que
cultiva opiniões polêmicas.
Considera o aquecimento global "um mito" e debocha de Al
Gore. Professor de finanças, foi
primeiro-ministro da República Tcheca (1992-1997) pouco
após o fim do comunismo e da
separação da Eslováquia, quando o país deu um salto para ser
uma das economias mais prósperas do Leste Europeu.
Fã do economista Milton
Friedman e da ex-premiê britânica Margaret Thatcher, ícones
do liberalismo, Klaus acha que
"a intervenção excessiva" do
Estado e "o aumento irresponsável de gastos públicos" estão
por trás da crise financeira global, na contramão do que pregam os caciques europeus.
Mas é contra a própria UE
que Klaus mais gosta de acertar
seus dardos. Embora exerça
um cargo cerimonial, suas alfinetadas contra a UE são motivo
de permanente mal-estar entre
Praga e Bruxelas.
Já se declarou um "dissidente da UE" e proibiu que a bandeira europeia seja hasteada no
Castelo de Praga. Até isso é
uma guinada em relação à
França, que transformou a torre Eiffel em monumento à UE,
com uma iluminação azul, a cor
da bandeira europeia.
Klaus fez questão de fazer
um discurso contra o Tratado
de Lisboa, em uma audiência da
Corte Constitucional que julgou a suposta incompatibilidade do texto com a lei tcheca.
Mas o esforço foi em vão: os
juízes não se convenceram de
que a reforma da UE é "uma
ameaça à soberania tcheca" e liberaram o texto para aprovação no Parlamento.
O premiê Topolánek anunciou para o dia 3 de fevereiro o
debate do tratado no Parlamento, mas a maioria dos analistas acha que a ratificação ainda demora no mínimo até outubro, quando a Irlanda deve realizar seu novo referendo.
Topolánek não tem pressa de
ir ao Parlamento, pois sua coalizão tem apenas 96 das 200 vagas. Ele tem conseguido governar graças a acordos com partidos independentes, mas a instabilidade é tanta que ninguém
descarta que um outro premiê
esteja no poder em junho,
quando a Suécia assume a presidência da UE.
(MARCELO NINIO)
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