São Paulo, quinta-feira, 01 de janeiro de 2009

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Com "eurocético" no poder, Praga assume chefia da UE

País, um dos únicos que não ratificou Tratado de Lisboa, terá presidência rotativa do bloco

Presidente que se afirma "dissidente da UE" contrasta com francês Sarkozy, que deu nova relevância a cargo em um semestre de crises

DE GENEBRA

A Europa começa o ano com uma mudança de estilo radical. Passado o furacão Nicolas Sarkozy, a Presidência da UE (União Europeia) vai para o país presidido pelo mais "eurocético" líder do bloco, o tcheco Václav Klaus. Seu desprezo pela correção política causa calafrios em Bruxelas e crescentes divisões domésticas.
As divergências entre Klaus e o primeiro-ministro Mirek Topolánek em torno dos méritos da integração europeia ameaçam frear o esforço deflagrado pela França para consolidar uma resposta coordenada da UE à crise financeira.
Para aumentar o constrangimento, a República Tcheca é um dos dois únicos países da UE que ainda não ratificaram o Tratado de Lisboa, a reforma constitucional do bloco -ao lado da Irlanda, que prometeu fazer novo referendo neste ano.
A responsabilidade que os tchecos assumem hoje foi amplificada pela frenética diplomacia francesa à frente da UE no último semestre.
Com a hiperatividade política que levou o jornal "Le Monde" a classificá-lo de "onipresidente", Sarkozy soube aproveitar o vácuo criado por um governo americano em fim de mandato para conferir visibilidade e liderança que há anos a UE não demonstrava.
Discussões sobre estilo à parte, poucos negam que Sarkozy teve sucesso na condução da política europeia através da sucessão de crises que enfrentou nesses seis meses. Mesmo na França, onde as políticas internas de Sarkozy são rejeitadas pela maioria, uma pesquisa recente mostrou que quase 60% da população aprova a atuação do país na liderança europeia.
A presidência francesa da UE teve início em meio à tempestade causada pela rejeição irlandesa ao Tratado de Lisboa, poucos dias antes. Menos de um mês depois, tropas russas invadiram a Ossétia do Sul. E, em setembro, veio a falência do banco americano Lehman Brothers, que deu início à fase mais aguda da crise financeira.
Sarkozy negociou um cessar-fogo entre a Rússia e a Geórgia; obteve da Irlanda o compromisso de realizar um novo referendo; articulou a reunião do G20 em Washington sobre a crise financeira; e ainda convenceu os líderes da UE a assinarem um acordo para reduzir em 20% as emissões de dióxido de carbono até 2020. No fim da sua gestão, tentou promover trégua entre Israel e o Hamas.
Para Jean-Dominique Giuliani, diretor da Fundação Robert Schuman, centro de estudos dedicados à UE, a atuação de Sarkozy foi "brilhante" e estabeleceu um novo paradigma.
"A Presidência do Conselho da UE deixa de ter uma função unicamente administrativa ou logística", opinou Giuliani em artigo sobre o efeito da liderança francesa. "Daqui em diante, ela terá de prover os meios para produzir avanços -e também as decisões políticas."
Mas o radar político detecta perigos. Em edição recente do "Libération", o colunista Alain Duhamel alertou para a "ameaça tcheca" que rondará a UE nos próximos seis meses. "Grandes homens também existem em pequenos países", escreveu. "Infelizmente, não é o caso do governo tcheco."
Para o analista, embora não aspire a ser o "coveiro das esperanças europeias", como Václav Klaus, o premiê Topolánek "carece de experiência e autoridade" para exercer a liderança do bloco, sobretudo nesses tempos de crise.

Iconoclasta
Klaus é um iconoclasta que cultiva opiniões polêmicas. Considera o aquecimento global "um mito" e debocha de Al Gore. Professor de finanças, foi primeiro-ministro da República Tcheca (1992-1997) pouco após o fim do comunismo e da separação da Eslováquia, quando o país deu um salto para ser uma das economias mais prósperas do Leste Europeu.
Fã do economista Milton Friedman e da ex-premiê britânica Margaret Thatcher, ícones do liberalismo, Klaus acha que "a intervenção excessiva" do Estado e "o aumento irresponsável de gastos públicos" estão por trás da crise financeira global, na contramão do que pregam os caciques europeus.
Mas é contra a própria UE que Klaus mais gosta de acertar seus dardos. Embora exerça um cargo cerimonial, suas alfinetadas contra a UE são motivo de permanente mal-estar entre Praga e Bruxelas.
Já se declarou um "dissidente da UE" e proibiu que a bandeira europeia seja hasteada no Castelo de Praga. Até isso é uma guinada em relação à França, que transformou a torre Eiffel em monumento à UE, com uma iluminação azul, a cor da bandeira europeia.
Klaus fez questão de fazer um discurso contra o Tratado de Lisboa, em uma audiência da Corte Constitucional que julgou a suposta incompatibilidade do texto com a lei tcheca.
Mas o esforço foi em vão: os juízes não se convenceram de que a reforma da UE é "uma ameaça à soberania tcheca" e liberaram o texto para aprovação no Parlamento.
O premiê Topolánek anunciou para o dia 3 de fevereiro o debate do tratado no Parlamento, mas a maioria dos analistas acha que a ratificação ainda demora no mínimo até outubro, quando a Irlanda deve realizar seu novo referendo.
Topolánek não tem pressa de ir ao Parlamento, pois sua coalizão tem apenas 96 das 200 vagas. Ele tem conseguido governar graças a acordos com partidos independentes, mas a instabilidade é tanta que ninguém descarta que um outro premiê esteja no poder em junho, quando a Suécia assume a presidência da UE. (MARCELO NINIO)


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