UOL


São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRISE EM CUBA

Para Fidel, "a lógica indicaria que [um confronto com os EUA] não deveria acontecer, mas é preciso lembrar que não existe muita lógica"

"Há uma situação de risco de guerra agora"

Mauricio Lima - 25.mai.2003/France Presse
Simpatizantes do presidente da Argentina, Néstor Kirchner, seguram faixa com as imagens de Lula, Fidel e Chávez, em Buenos Aires


DO "CLARÍN"

Leia a seguir a continuação da entrevista do ditador Fidel Castro.
 

Pergunta - Quando o sr. fala em um representante dos EUA enviado com a missão específica de provocar incidentes, o sr. está falando de James Cason, chefe da seção de interesses dos EUA em Havana?
Fidel Castro -
O último. Que chegou em setembro do ano passado, mais ou menos. Era incrível. Ele percorria a ilha toda devido à necessidade de monitorar os que emigraram e os que eles enviaram de volta. E não existe uma única violação cometida contra os cubanos que eles mandaram de volta, nenhum tipo de represália. A maioria dos que tentam ir aos EUA como clandestinos o faz porque, por meios normais, eles não lhes concedem vistos, muitas vezes por terem antecedentes ou potencial criminosos. E aqui se uniu essa coisa. No dia 14 de março, quando a decisão [dos sequestros] foi tomada, esse homem já vinha percorrendo a ilha, organizando todos esses grupos abertamente, levando de contrabando malas cheias de rádios e coisas para sua emissora, criando as chamadas bibliotecas independentes, que incluíam dois ou três autores bons e depois veneno puro, da pior literatura e da pior propaganda. É como se nós disséssemos à nossa embaixada: "Organize bibliotecas na Argentina, no Brasil ou em qualquer outro lugar".
Bem, o homem fez algumas declarações insuportáveis. Ele as fez em 24 de fevereiro, se não me engano, numa recepção. Eram declarações de dirigente político.
No dia 6 de março, fui falar diante da Assembléia Nacional e respondi ao indivíduo, que não imaginasse que fôssemos tolerar isso, que, se quisessem levar a embaixada ou pôr fim ao acordo migratório, nada disso seria preocupante para nós. Foi colocada uma coisa: que isso de ir monitorar era uma concessão, não prevista no acordo. Havia normas para eles e para nós, mas eles não pediam autorização para se deslocar. Então dissemos: "É preciso pedir autorização com três dias de antecedência, e será preciso esperar a autorização para se deslocar".
Ele emprestou a sede para uma reunião do comando desses grupos às vezes chamados de dissidentes. Temos todas as provas do dinheiro que recebem, como o recebem -porque também entre esses dissidentes, como é natural, havia alguns que tinham sido revolucionários antes. Mas, com todas as provas, escritas e de todo tipo, quero que se saiba que a ação foi limitada. Então muitos amigos do norte diziam: "Escutem aí, não expulsem os americanos". Nós não íamos expulsá-los, porque não expulsamos ninguém em todos esses anos, nem da ONU nem de Washington.

Pergunta - Mas a decisão de não expulsar os supostos instigadores estrangeiros não parece ser proporcional à de executar cidadãos cubanos ou condená-los a longas penas de prisão.
Fidel -
Existe confusão a esse respeito. Nenhum dos cidadãos cubanos foi condenado à morte nem a 30 anos de prisão. Alguns foram condenados a cinco ou seis anos. Os demais, de acordo com sua responsabilidade. A pena de morte foi dada contra alguns indivíduos que já não eram dissidentes, mas de potencial criminoso.
No dia 19 de março, no mesmo dia em que explodiu a guerra no Iraque, uma hora antes de começar a guerra, um avião cubano que trazia passageiros da ilha de Juventud, com 40 passageiros a bordo, foi sequestrado por indivíduos armados com facas. Ao chegar ali [aos EUA] -era a primeira vez que isso acontecia-, prenderam algumas pessoas, deram residência a seus cúmplices e, quatro dias mais tarde, um juiz decidiu que eles tinham direito à liberdade condicional -pessoas que fizeram o mesmo que aqueles que provocaram a catástrofe de 11 de setembro. Digo em potencial porque eram pessoas com antecedentes comuns. Bem, as pessoas que deixam o país ilegalmente o fazem porque nunca mais vão lhes dar vistos. Com certeza não dão visto a pessoas que tenham antecedentes criminais comuns.
No dia 31 de março, em um segundo avião vindo do mesmo lugar, com 46 passageiros, alguém carregando uma suposta granada deu ordens de desviar o avião. O piloto retornou e aterrissou. Houve negociações. Havia algumas pessoas nos EUA que compreendiam que isso era uma loucura e que não estavam de acordo. A situação foi discutida. Eles disseram, com muita energia, que iam castigar, até nos pediram que divulgássemos o caso. Fizemos tudo isso. E eles próprios, alguns deles, não queriam que o avião aterrissasse na Flórida. O que fizemos, então? Conseguiram fazer o avião descer e se abastecer de combustível, mas, mesmo assim, o aterrissaram em Key West [Flórida], e lá são as autoridades correspondentes que decidem se haverá investigação ou não. Então, cada vez que roubam um avião, os sequestradores devem sair impunes? Na Flórida existe um Estado semi-independente, e lá se faz o que eles bem entendem, e eles têm controle total sobre a polícia, as autoridades, os juízes, os fiscais. A onda de assaltos e sequestros de aviões é inadmissível.
Então o outro foi um barco de passageiros em águas interiores da baía, uma embarcação que pode levar até cem passageiros, mas nesse momento levava 40. Eles também foram sequestrados com facas e pistolas. O único incidente desse tipo que já tinha acontecido em Havana foi em 5 de agosto de 1994. Não sei se vocês conhecem a história, como a situação foi resolvida sem Exército, sem polícia e sem um único tiro disparado. Eles tinham sido enganados por aquela rádio (Rádio Martí, com transmissões dos EUA para o território cubano); disseram a eles que um grupo de barcos vinha buscá-los. Quando os barcos não vieram, criaram um tumulto. Foi o momento mais difícil daquele período especial.

Pergunta - Que foi seguido pela onda migratória.
Fidel -
Porque existe uma lei americana chamada Lei de Ajuste Cubano, que se aplica a um único país do mundo, um país situado muito perto dos EUA, que afirma que é direito de todo cubano que chegar aos EUA como ilegal receber residência no país. Imagine o que fariam os mexicanos se lhes fosse oferecida uma lei de ajuste. Nós não a pedimos, porque a chamamos de lei assassina.
Centenas de mexicanos morrem todos os anos na fronteira dos EUA com o México. Não se fala disso. Falou-se terrivelmente de Cuba porque precisam aplicar uma sentença. Compreendo e dou razão à imensa maioria daqueles que se opõem à pena de morte, porque ela nos desagrada muito. E se nós, que fizemos uma moratória de quase três anos na aplicação da pena de morte, fomos obrigados a rompê-la, é porque eles, com o que fizeram, que foi deliberado, já tinham pensado nisso, e sabíamos disso. Queriam criar uma espécie de onda migratória que servisse de argumento para dizer que a segurança dos EUA estava correndo risco. Essa palavra eles utilizam para tudo. Se a Argentina produz carne demais e ameaça reduzir o preço internacional, pode ser um perigo para a segurança dos EUA.
A idéia era que se produzisse um êxodo. Que nós nos irritássemos e disséssemos: "Que saiam todos, então". Agora, você não pode permitir que comece uma onda, porque ela pode crescer muito. Imagine, basta que um sujeito leve uma granada no bolso...

Pergunta - Existem dois adversários -os EUA e o Estado da Flórida?
Fidel -
É esse o problema. Na Flórida, pensam que são donos totais, mas não são, porque algumas prerrogativas têm de ser compartilhadas. Apesar disso, costumam fazer o que bem entendem, porque a administração Bush deve a eles sua vitória e por isso lhes é grata e reconhecida. Então são essas as coisas que se acumularam. As primeiras prisões foram feitas em 18 de março, e o caso do barco aconteceu em 1º de abril. Chegaram inclusive a ameaçar que, se não lhes fosse dada outra embarcação, começariam a atirar reféns na água. Bem, em situações como essa existe um exemplo e um precedente. O que nós fazíamos aos que roubavam aviões norte-americanos era castigá-los, devolver o avião no ato e dar atendimento aos passageiros. Porque eles inventaram essa coisa de sequestro, mas depois virou um bumerangue, porque há muita gente desequilibrada. Os pilotos normalmente têm instruções de não correr nenhum risco.
Não haveria necessidade de fuzilar ninguém se os sequestradores os devolvessem, como nós devolvemos e resolvemos o problema, de tal modo que não voltou a acontecer por 20 anos, com desequilibrados e tudo. Era evidente que isso o havia cortado pela raiz. Nesse castigo, o Conselho de Estado não exerceu clemência. E esses crimes são castigados com a pena capital há muito tempo. Os dissidentes inclusive cometem atos de traição. Digo a eles que esses atos serão castigados. As sanções podem ser piores. Podem ser prisão perpétua ou pena capital. E algumas dessas leis não foram usadas. Por quê? Porque não havia interesse nisso, não havia uma situação de perigo de guerra como a que temos agora.

Pergunta - Há uma guerra agora?
Fidel -
O perigo de uma onda de sequestros de embarcações. Foi preciso fazer uma declaração forte, uma mensagem contundente: "E aqueles que fizerem o mesmo serão enviados a julgamento sumário, e o Conselho de Estado não exercerá clemência". Porque agora eles inclusive colocam em risco os passageiros. De quem é a responsabilidade por esses mortos? Nossa ou daqueles que estão provocando isso, lá nos EUA? Porque já não é o caso de discutir se a culpa é de quem comete o delito ou de todos aqueles que nos condenaram sem piedade porque tivemos de aplicar uma medida para defender o país.

Pergunta - Uma guerra é algo diferente de uma polêmica em torno de sanções. Há o risco de uma invasão?
Fidel -
Quanto uma guerra em Cuba custaria aos EUA? Não seria menos de milhões, porque com meu país, que já tem uma cultura, a guerra não terminaria em três dias, nem em dez, nem em cem. Já estudamos todas as invasões que os EUA fizeram, suas técnicas e como nos defender. É uma guerra que não queremos, uma vitória que não desejamos, mas, desde já, não entregaremos o país de graça. Falo com franqueza.

Pergunta - Desde a crise dos mísseis, em 1962, uma ação militar dos EUA contra Cuba foi se tornando uma possibilidade cada vez mais remota. Hoje, nesse esquema novo, tornou-se mais possível?
Fidel -
Sim, esse erro se tornou mais possível. A lógica indicaria que ela não deveria acontecer. Mas precisamos lembrar que não existe muita lógica. Naquela crise houve um risco iminente por um tempo determinado, um certo número de dias. Agora o risco é prolongado.

Pergunta - Parece que já chegou a hora de pensar em uma transição para Cuba. Como o sr. a imagina?
Fidel -
E transição para onde? Me diga para onde, porque, se existe um modelo melhor do que o nosso, juro que eu faria todo o possível, começaria outra vez a lutar outros 50 anos.

Pergunta - Como o sr. imagina o futuro de Cuba quando Fidel Castro já não estiver mais em cena?
Fidel -
Essa pergunta eu também faço a mim mesmo. O erro é achar que Fidel Castro é tudo. Porque todos dizem: ""Fidel faz isso, Fidel faz aquilo". Por exemplo, posso me atribuir -com constrangimento, porque não quero exaltar coisas pessoais- a idéia de como resolver o problema do poder quando se deu o golpe de Estado de 10 de março de 1952. Não tínhamos nem um centavo, nem uma arma, e aquilo era uma força tremenda. Além disso, ninguém nos dava muita bola. Porque o governo derrubado tinha muitos recursos. E tivemos reveses muito fortes. Não há muito mérito onde muita coisa acontece como fruto do acaso. Porque vocês podem me dizer: ""Por que o senhor está aí?", e eu direi: é uma questão de sorte, de acaso, entre outras coisas. Mas existem algumas idéias. Como resolver esse problema, isso era algo bem difícil. E também houve grandes riscos pessoais. Mas foi possível resolver esse problema. Depois vieram outros, como os do embargo. Depois chegou o chamado "período especial", que foi um bloqueio dentro de um bloqueio já rigoroso. E ninguém dava um centavo pela sobrevivência da revolução.
Se as informações reais e verídicas fossem bem conhecidas, poderiam nos fazer todas as críticas que quisessem. Mas poderiam compreender de fato que, se fôssemos as pessoas que pintam, não teríamos o apoio do povo, que tem sido chave em níveis que acredito serem sem precedentes. E não com base no fanatismo, porque não somos chauvinistas, não somos fundamentalistas -pelo contrário, vimos procurando educar nossa população num conceito de solidariedade interna e externa.
As pessoas precisam ter um ideal. Às vezes, em vez de ideais, o que dão às pessoas é fanatismo, pobreza, racismo. E nosso país não se mantém assim -ele se mantém sobre idéias. Não fosse assim, não teríamos podido lutar contra esse monstro que nos teria corroído com seus meios de divulgação, seu embargo, sua exibição de riqueza. Então vou dizer apenas mais isto: se nos conhecessem melhor, poderiam nos fazer todas as críticas que quisessem, porque uma pessoa tem o direito de opinar. Mas o problema é que o que se conhece de Cuba vem de uma informação que foi deformada durante muito tempo. O senhor me perguntava sobre uma mudança, mas eu lhe perguntava para onde. Em direção ao que vemos no mundo? Renunciando ao que temos? Não quero enumerar as coisas que temos devido a razões éticas profundas: confiança. Sabe que nunca se diz uma mentira? Porque em nosso país as pessoas conhecem as regras. Escrevem-se livros por aí dizendo que em Cuba há tortura e outras 20 coisas. Não obstante dissemos: ""Damos tudo, o pouco que temos, a quem possa demonstrar que tenha ocorrido uma tortura em nosso país". Livros desse tipo se semearam aos montes, mas nós resistimos. A revolução possui uma couraça para sua defesa.


Texto Anterior: Crise em Cuba: "Fomos obrigados", diz Fidel sobre execuções
Próximo Texto: Quem é: Do heroísmo ao isolamento, Fidel vai se esvaecendo
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.