|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Kerry é um 'free-trader'; toda sua equipe de política externa é de internacionalistas oriundos da gestão de Bill Clinton
Bush ou Kerry: faz diferença para o Brasil?
TIMOTHY J. POWER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sofro overdose de campanhas
eleitorais. Amanhã, na condição
de cientista político e brasilianista, passarei o dia lendo os jornais
brasileiros para poder decifrar o
segundo turno das eleições municipais. Na terça, na condição de
eleitor da Flórida, terei a oportunidade de votar no Estado que decidiu a eleição presidencial de
2000. Devo confessar, de antemão, que meu voto irá para a chapa Kerry-Edwards. Sou democrata, natural de Massachusetts e
eleitor tradicional de John Kerry.
No Brasil, correm boatos de que
ministros do governo e caciques
do PT querem ver a reeleição do
Bush. A tese da "opção preferencial para os republicanos" é baseada em dois pontos, ambos absurdos. O primeiro cita o relacionamento pessoal entre os dois
presidentes, até hoje considerado
surpreendentemente positivo.
É bom que Bush e Lula tenham
construído uma amizade pessoal.
Mas até que ponto isso pode trazer resultados concretos para a
política externa brasileira? O fato
de que os dois falam por telefone
ou trocam brincadeiras na abertura da ONU significa algo importante? Duvido. Na hora de negociar, por exemplo sobre a Alca,
vão prevalecer os interesses nacionais e pronto. Quando Lula
chegar ao primeiro ponto delicado, Bush vai contar uma piadinha
texana e logo passar o telefone para Robert Zoellick. Ao testemunhar esse entusiasmo sobre a cordialidade interpresidencial, lembro-me de similar otimismo por
parte do governo Geisel, para
quem a amizade entre Kissinger
[então secretário de Estado americano] e Azeredo [à época chanceler brasileiro] iria revolucionar
o relacionamento bilateral Brasil-EUA. O atual governo não deveria
repetir a mesma ingenuidade.
O segundo ponto do viés pró-Bush é ainda mais sério. Aparentemente, alguns ministros do governo brasileiro receiam que uma
vitória de Kerry poderia desencadear uma onda protecionista aqui
nos EUA. Apesar de ser equivocada, essa interpretação é parcialmente compreensível, uma vez
que decorre de acontecimentos e
discursos da pré-campanha do
Partido Democrata.
Os democratas são protecionistas? Alguns são. Exemplos são o
deputado Richard Gephardt ou o
próprio John Edwards, companheiro de chapa de Kerry. Esses
parlamentares têm suas bases no
movimento sindical (Gephardt)
ou representam circunscrições
geográficas atingidas por uma
perda de empregos atribuída ao
livre comércio (Edwards).
Durante a pré-campanha democrata, militantes sindicais tiveram um papel muito grande no
processo decisório do partido.
Portanto, era natural que Kerry,
um "free-trader" histórico, tenha
tido que flertar brevemente com
os elementos protecionistas para
driblar, eleitoralmente, os concorrentes. Em 2003 e no início de
2004, em virtude da competição
intrapartidária, o discurso do senador começou a ecoar um pouco
o tom ameaçador dos colegas.
Mas quem presta atenção sabe
que o discurso protecionista de
Kerry acabou quando ganhou a
indicação do partido. Isso era previsível. Durante a pré-campanha,
qualquer candidato democrata
sempre apela para as bases corporativistas do partido, mas, na eleição, volta ao centro.
Clinton fez o mesmo: como
candidato, em 92, alfinetou o projeto da Nafta, mas, como presidente, em 93, fez todo o esforço
necessário para aprovar o acordo.
A análise dos quase 20 anos de Senado de John Kerry revela que nada consta no seu currículo que sugira tendência protecionista.
Repito: Kerry é "free-trader", e
Edwards, como qualquer vice, seria fiel escudeiro do presidente.
Ademais, toda a equipe de política externa de Kerry é de internacionalistas oriundos da era Clinton. A verdade é que hoje, em matéria de comércio exterior, a elite
internacionalista do partido democrata não é muito diferente do
"mainstream" republicano.
Essa tese de que a vitória democrata levaria a onda protecionista
é cheia de ironia. É o contrário: o
maior risco de radicalização protecionista do Partido Democrata
seguiria a uma derrota de Kerry.
Nessa hipótese, Edwards seria
pré-candidato em 2008, e a prorrogação da gestão Bush por quatro anos poderia levar ao endurecimento do nacionalismo econômico do Partido Democrata.
Os dirigentes brasileiros não deveriam enfocar, de modo míope,
essa única dimensão de política
comercial. Há outros problemas
no mundo, e o Brasil tem interesse de promover soluções multilaterais, em vez de unilaterais. Sobre quase todos esses temas, John
Kerry adota posições mais congruentes com a tradição multilateralista e não-intervencionista
do Itamaraty. Assim, a melhor
opção do Brasil é sempre endossar princípios, e não pessoas.
Timothy J. Power, 42, cientista político
e brasilianista, é professor da Florida International University e presidente da
Brazilian Studies Association (Brasa).
Texto Anterior: O império vota/Reta final: Bush favorece Brasil, dizem economistas Próximo Texto: Guerra ao terror revela limites do império, diz Fiori Índice
|