São Paulo, segunda-feira, 01 de novembro de 2004

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ARTIGO

Kerry é um 'free-trader'; toda sua equipe de política externa é de internacionalistas oriundos da gestão de Bill Clinton

Bush ou Kerry: faz diferença para o Brasil?

TIMOTHY J. POWER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sofro overdose de campanhas eleitorais. Amanhã, na condição de cientista político e brasilianista, passarei o dia lendo os jornais brasileiros para poder decifrar o segundo turno das eleições municipais. Na terça, na condição de eleitor da Flórida, terei a oportunidade de votar no Estado que decidiu a eleição presidencial de 2000. Devo confessar, de antemão, que meu voto irá para a chapa Kerry-Edwards. Sou democrata, natural de Massachusetts e eleitor tradicional de John Kerry.
No Brasil, correm boatos de que ministros do governo e caciques do PT querem ver a reeleição do Bush. A tese da "opção preferencial para os republicanos" é baseada em dois pontos, ambos absurdos. O primeiro cita o relacionamento pessoal entre os dois presidentes, até hoje considerado surpreendentemente positivo.
É bom que Bush e Lula tenham construído uma amizade pessoal. Mas até que ponto isso pode trazer resultados concretos para a política externa brasileira? O fato de que os dois falam por telefone ou trocam brincadeiras na abertura da ONU significa algo importante? Duvido. Na hora de negociar, por exemplo sobre a Alca, vão prevalecer os interesses nacionais e pronto. Quando Lula chegar ao primeiro ponto delicado, Bush vai contar uma piadinha texana e logo passar o telefone para Robert Zoellick. Ao testemunhar esse entusiasmo sobre a cordialidade interpresidencial, lembro-me de similar otimismo por parte do governo Geisel, para quem a amizade entre Kissinger [então secretário de Estado americano] e Azeredo [à época chanceler brasileiro] iria revolucionar o relacionamento bilateral Brasil-EUA. O atual governo não deveria repetir a mesma ingenuidade.
O segundo ponto do viés pró-Bush é ainda mais sério. Aparentemente, alguns ministros do governo brasileiro receiam que uma vitória de Kerry poderia desencadear uma onda protecionista aqui nos EUA. Apesar de ser equivocada, essa interpretação é parcialmente compreensível, uma vez que decorre de acontecimentos e discursos da pré-campanha do Partido Democrata.
Os democratas são protecionistas? Alguns são. Exemplos são o deputado Richard Gephardt ou o próprio John Edwards, companheiro de chapa de Kerry. Esses parlamentares têm suas bases no movimento sindical (Gephardt) ou representam circunscrições geográficas atingidas por uma perda de empregos atribuída ao livre comércio (Edwards).
Durante a pré-campanha democrata, militantes sindicais tiveram um papel muito grande no processo decisório do partido. Portanto, era natural que Kerry, um "free-trader" histórico, tenha tido que flertar brevemente com os elementos protecionistas para driblar, eleitoralmente, os concorrentes. Em 2003 e no início de 2004, em virtude da competição intrapartidária, o discurso do senador começou a ecoar um pouco o tom ameaçador dos colegas.
Mas quem presta atenção sabe que o discurso protecionista de Kerry acabou quando ganhou a indicação do partido. Isso era previsível. Durante a pré-campanha, qualquer candidato democrata sempre apela para as bases corporativistas do partido, mas, na eleição, volta ao centro.
Clinton fez o mesmo: como candidato, em 92, alfinetou o projeto da Nafta, mas, como presidente, em 93, fez todo o esforço necessário para aprovar o acordo. A análise dos quase 20 anos de Senado de John Kerry revela que nada consta no seu currículo que sugira tendência protecionista.
Repito: Kerry é "free-trader", e Edwards, como qualquer vice, seria fiel escudeiro do presidente. Ademais, toda a equipe de política externa de Kerry é de internacionalistas oriundos da era Clinton. A verdade é que hoje, em matéria de comércio exterior, a elite internacionalista do partido democrata não é muito diferente do "mainstream" republicano.
Essa tese de que a vitória democrata levaria a onda protecionista é cheia de ironia. É o contrário: o maior risco de radicalização protecionista do Partido Democrata seguiria a uma derrota de Kerry. Nessa hipótese, Edwards seria pré-candidato em 2008, e a prorrogação da gestão Bush por quatro anos poderia levar ao endurecimento do nacionalismo econômico do Partido Democrata.
Os dirigentes brasileiros não deveriam enfocar, de modo míope, essa única dimensão de política comercial. Há outros problemas no mundo, e o Brasil tem interesse de promover soluções multilaterais, em vez de unilaterais. Sobre quase todos esses temas, John Kerry adota posições mais congruentes com a tradição multilateralista e não-intervencionista do Itamaraty. Assim, a melhor opção do Brasil é sempre endossar princípios, e não pessoas.


Timothy J. Power, 42, cientista político e brasilianista, é professor da Florida International University e presidente da Brazilian Studies Association (Brasa).


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