São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2004

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Até mortos votam na "eleição do litígio"


Autoridades se surpreendem com a quantidade de acusações

Maioria dos negros acha que seus votos não serão contados



CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MIAMI

Roberto Courtney, especialista nicaragüense que é um dos observadores internacionais da eleição norte-americana, terminou o primeiro dia de inspeção satisfeito com o que viu, mas, mesmo assim, deixa um aviso:
"Cuidado, os advogados estão à solta".
Boa lembrança para um país que tem recorde de advogados, recorde de litígios judiciais e em que as piadas sobre os advogados só perdem em preferência -e graça- para as piadas dos judeus sobre eles próprios.
Lembrança ainda mais válida quando se sabe que até os mortos votam, embora não se saiba bem se seus votos serão ou não contados, o que abre mais um campo para contenciosos judiciais.
O material para as demandas é farto. Segundo o "New York Times", autoridades eleitorais americanas dizem não ter visto, em eleições recentes, tamanha quantidade de acusações de fraude e de intimidação de eleitores.
Como 32 dos 50 Estados oferecem a possibilidade de votar antecipadamente, cria-se a situação em que o eleitor pode depositar seu voto, mas morrer antes do dia oficial da eleição, que é hoje.
O jornal "The Miami Herald" lembra que, na Flórida, 1,8 milhão de eleitores votaram antes ou pelo correio (no caso de quem vai estar hoje fora de seu local de votação). Lembra também que, na média, 455 pessoas em idade eleitoral morrem por dia. Como a eleição de 2002 foi decidida, no Estado, por meros 537 votos, o voto dos mortos pode eleger o presidente -um cenário só imaginável, assim mesmo antigamente, nas mais notórias repúblicas bananeiras da América Latina.
Pior: em cinco Estados, há leis que dizem que os votos dos que morrem antes do dia eleitoral propriamente dito devem, sim, ser contados. Nos outros, há um buraco legal, o território por excelência para advogados.
Se morto vota, nada mais natural que haja gente querendo votar duas vezes, em Estados diferentes.
O jornal "Plain Dealer" (Ohio) informa que cerca de 27 mil eleitores registraram-se tanto em Ohio como na Flórida, sendo 11 mil republicanos, 9.600 democratas e 6.400 independentes.
Como não há um registro nacional de eleitores, fica difícil controlar quem vota onde, e abre-se mais um flanco para demandas judiciais.
A disputa está tão equilibrada, segundo as pesquisas, que cada voto é disputado e contestado. Steve Gey, professor de direito na Universidade Estadual da Flórida, conta ter recebido consulta sobre a validade dos votos depositados pelos portadores do mal de Alzheimer.
"A lei da Flórida requer que você esteja capacitado para votar. Mas o que acontece com os votos de uma casa de repouso predominantemente para portadores de Alzheimer? Quem de fato votou?", pergunta Gey, já ensaiando argumentos para uma demanda.
Antes delas, no entanto, está aberta também a brecha para confrontos até físicos: fiscais de ambos os partidos se dizem prontos para impugnar registros de eleitores supostamente falsos.
A hipótese de que haja tais registros nasceu também em Ohio, onde 10 mil cartas enviadas a endereços dados por eleitores registrados nos últimos meses foram devolvidas com a indicação de que não existia ou o endereço ou o eleitor supostamente ali residente.
Os republicanos, que fizeram a constatação, gritaram imediatamente que uma fraude estava em andamento. Os democratas, responsáveis pela grande maioria dos registros questionados, dizem que os adversários querem apenas brecar o voto em distritos majoritariamente democratas, em especial aqueles em que residem negros, que votam Kerry na proporção de 7 para 2, com 1% de indecisos.

Desconfiança
É natural, nesse cenário, que uma maioria de eleitores -e um número impressionante de afro-americanos- tenha dito em pesquisa do jornal "The New York Times" que estão preocupados com a possibilidade de que seus votos não sejam adequadamente contabilizados.Um terço afirmou esperar problemas de contestação na hora em que forem votar, e 79% dos negros dizem acreditar que, em alguns Estados, haverá um esforço deliberado para evitar que votem hoje.
À medida que o dia da eleição se aproximava, crescia entre o eleitor americano a sensação de que algo não fosse dar certo hoje. No geral, apenas 33% dos eleitores disseram acreditar que os votos seriam contados adequadamente. Em meados de outubro, eram 58%.
Nem Courtney, o observador nicaragüense, nem a Folha constataram problemas de contestação de registro eleitoral na votação antecipada em Miami. Mas a explicação do observador é simples e lógica: até agora, o eleitor é itinerante, logo o fiscal não pode saber se se trata de um distrito de maioria democrata ou republicana.
"Vetar alguém pode ser um tiro no próprio pé", diz Courtney.
Hoje, no entanto, o voto será no distrito de cada eleitor, e aí sim a margem de contestação tende a surgir.

Editoria
Mesmo que os Estados Unidos não fossem a nação dos advogados e dos litígios que é, acabaria sendo natural a formidável mobilização de advogados para a eleição. Vinte mil deles estão a postos, o que causou a revolta do jornal "The Miami Herald" no editorial publicado domingo.
"A eleição deveria ser decidida pelos eleitores, não pelos advogados", diz o texto.
Se o resultado ficar dentro do que a mídia local vem chamando de "margem de litígio" (pequena diferença), o apelo do jornal tende a cair no vazio.


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