São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2004

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ON THE ROAD

No Sul Profundo, patos, tigres e uma Flórida dividida em três


Moradores da região colam nos carros adesivos com dizeres discretos, como W/2004 em vez dos mais comuns Bush/Cheney de outras regiões do país

A Flórida é dividida entre o norte republicano, como os Estados vizinhos, o centro "ao centro" e o Sul multicultural e "liberal" de Miami e dos latinos



SÉRGIO DÁVILA
EM TALLAHASSEE (FLÓRIDA)

É hoje. E, por que é hoje, os eleitores que encontro ao longo da Interestadual 10 têm perguntas.
Brian Colt quer saber por que que "nós" (os americanos) não mandamos mais "gente" (soldados) ao Iraque, assim "eles" (os insurgentes) param de atacar. Quer saber também por que os "alphabet channels" (ABC, CBS e NBC, as três principais emissoras de TV aberta, geralmente acusadas pelos conservadores de terem viés "liberal" -esquerdista no jargão político dos EUA) não noticiaram que Saddam Hussein participou do atentado terrorista de Oklahoma City, há nove anos.
Brian Colt vota em George W. Bush. Brian Colt é a Flórida.
Quatro anos depois, o Estado-problema se prepara para voltar às urnas. Esta coluna finalmente adentra o último Estado da viagem (embora ainda não ao destino final, a última cidade, que é West Palm Beach, mais ao sudeste). A primeira constatação: a Flórida, na verdade, são três. O norte é afinado politicamente com seus vizinhos do Sul Profundo (Louisiana, Mississippi e Alabama), religiosamente com o chamado Cinturão Bíblico e no geral com os republicanos, cujo personagem mais comum é gente como o eleitor Brian Colt.
O centro é politicamente mais ao centro, graças à presença de milhares de aposentados de Nova York e Nova Jersey, muitos de origem judaica. E o sul é a multicultural Miami, principalmente dos imigrantes latinos e da comunidade de exilados cubanos. Não é à toa que o Estado governado pelo primeiro-irmão Jeb continua indeciso entre Bush e o senador democrata John Kerry.
Só para registro, Tallahassee, penúltimo ponto de "On The Road", é uma das primeiras grandes cidades da Interestadual 10 passados os curtos litorais de Mississippi e Alabama, espécie de Piauís locais em extensão costeira. Mas, não se iluda, continuamos no Sul mais do que Profundo.
Desde a fronteira com o leste do Texas, na verdade, esse novo mundo já se anuncia. Primeiro, pelo verde que toma conta da margem da estrada, deixando o marrom dos últimos três Estados (Arizona, Novo México, Texas) para trás. Segundo, pela água, que passa a ser mais abundante nas margens da rodovia, seja pelo rio Mississippi, cruzado logo antes de Baton Rouge, em Louisiana, seja pelos lagos e o pântano. Terceiro, pela diferença de outdoors que enfeitam a paisagem.
Funerárias, profissionais especializados em pagamento de fiança e anúncios de armas e munições não são incomuns. Pudera: Flórida, Louisiana e Alabama estão entre os dez Estados com mais executados à morte nos EUA, 59, 37 e 27 mortos respectivamente desde 1976. O segundo é considerado o mais perigoso entre os 50 Estados dos EUA, com o dobro da taxa média de crime do país -o que corrobora a tese de entidades humanistas de que a pena capital não diminui necessariamente a criminalidade.
O programa de rádio mais ouvido por aqui é o "American Hit List", na verdade distribuído para o país inteiro, mas forte no sul, criado por "Machine Gun" Kelly (Kelly Metralhadora). Em segundo lugar, estão as estações evangélicas. Biloxi, uma das principais cidades do Mississippi, tem mais eleitores do que habitantes em 34 de seus 82 distritos. Mobile, no Alabama, conta com as únicas urnas eletrônicas que não registram os votos também em papel, como recomendado para evitar fraudes. E Baton Rouge?

Baton Rouge
"Phony". É assim, como o personagem Holden Caulfield definia os adultos no livro "O Apanhador no Campo de Centeio", que parte dos eleitores de Baton Rouge enxerga John Kerry. Ou seja, falso, dissimulado. Primeiro, uma explicação preliminar: no sábado, será declarada aberta a temporada de caça aos patos por menores de 15 anos, a chamada "Youth Duck Hunt". Esse, e não as eleições, é o assunto que domina Baton Rouge, a bela capital do Estado, em que elevados e pântanos convivem em harmonia.
Pois pegou mal entre os legítimos caçadores sulistas a "photo op" do senador democrata há duas semanas, quando, vestido à caráter e obviamente fora de seu habitat, atirou em um ganso canadense em Springfield Township, Ohio. "Posso apostar que o homem nunca caçou na vida", comentavam caçadores que preferiram não dar os nomes num posto de gasolina, enquanto limpavam suas espingardas na parte de trás de sua caminhonete.
Do mesmo jeito, há algumas semanas John Edwards, o candidato a vice na chapa democrata, visitou a cidade e, num comício, se referiu ao time de futebol americano local como "o Louisiana State Tigers". Foi o equivalente a um político não-paulistano querer se enturmar em São Paulo dizendo "e o Sport Clube Corinthians Paulista, hein?". "Eu moro em Louisiana há 20 anos e nunca vi ninguém jamais se referir aos Tigers assim", com o nome completo, disse Nick Gillespie, do blog conservador Vodkapundit. "Esse pessoal está perdido..."
Patos e tigres, esses os dois assuntos principais no principal dos três Estados do sul visitados. Aliás, o grito de guerra do tal time local diz muito sobre o espírito bem humorado do habitante de Louisiana, uma espécie de carioca do lado de cá, adepto do que eles chamam de "the big easy", ou o "jeitinho". Quando a equipe entra em campo, os torcedores levantam faixas com a frase "Geaux, Tigers!" -pronuncia-se "Go, Tigers!", mas brinca com o passado de colonização francesa do lugar.
Já no quesito adesivo de carro, a região também está com George W. Bush, mas de maneira mais discreta. São poucos os que trazem a dupla "Bush/Cheney" nos vidros -muitos optam pelo mais sutil "W/2004". A maioria, no entanto, prega um laço (azul, amarelo ou com as cores da bandeira do país) com dizeres típicos da plataforma conservadora, como "apóie nossas tropas" e "a liberdade não sai de graça".
Enquanto isso, minha relação com meu aparelho de navegação por satélite (da marca Never Lost, modelo Magellan, que batizei de "Magali") começa a se deteriorar e ganhar ares de "2001 - Uma Odisséia no Espaço". Não agüento mais a voz de meu HAL rodoviário dizendo em inglês monocórdico: "Entre à direita daqui a uma milha e meia", "vire ligeiramente à esquerda no próximo semáforo". Procurei no menu e mudei o registro para espanhol, por um dia. Ela não deixa por menos: "Atención, izquierda en dos punto cinco millas". E a mosca que nos acompanha no carro desde Phoenix, Arizona, continua. Algo me diz que seu registro eleitoral é na Flórida.


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