São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2007

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Classe média russa cresce e agradece ao Kremlin

Renda per capita aumentou dez vezes sob Putin, mas disparidades são grandes

País tem 130 mil milionários e 53 com US$ 1 bi; contra petrodependência, governo lança espécie de PAC para atrair investimento privado

DO ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU

Em março de 2000, poucos dias antes da eleição que confirmou Vladimir Putin como presidente da Rússia, a rede sueca de móveis Ikea abriu sua loja em Moscou, um dos primeiros sinais de recuperação econômica após o baque da crise que afundou o país em 1998. O barril de petróleo custava menos de US$ 30.
A Ikea fica na zona noroeste da capital russa, perto dos dois terminais do aeroporto Sheremetievo. Em 2000, parecia um galpão isolado, e seus clientes eram mais curiosos do que compradores. Quase oito anos depois, tudo mudou. Um shopping, adequadamente chamado de Mega, cresceu e envolveu a Ikea, quase comendo o monumento onde as forças nazistas foram paradas pelos soviéticos em 1941 -a 30 km do Kremlin.
Hoje o barril bate nos US$ 100, a Rússia consolidou sua posição como segundo maior produtor de petróleo mundial e o maior de gás natural. Segundo a consultoria e corretora Uralsib, há 130 mil milionários russos, 80% deles na região metropolitana de Moscou. A lista da revista "Forbes" põe 53 russos com mais de US$ 1 bilhão; nenhum país tem mais ricaços.

Luxo e disparidade
Pode-se dizer que a renda média mensal do russo cresceu dez vezes de 1999 para cá, mas isso também significa que ela passou para apenas US$ 550. Ou que agora existe uma classe média, que segundo o Ministério da Economia representa 25% dos 142 milhões de russos. Sete anos atrás, eram 10%, mas ainda estão longe dos 60% em média da Europa Ocidental.
Entre esses 25% de pessoas está Lyubov Semenova. "Adoro vir para ter idéias para casa", disse essa consultora de marketing de 32 anos, que passeava pela Ikea na quinta passada -sem comprar nada. Ela ganha o equivalente a R$ 5.000 mensais e mora em um apartamento comprado na zona norte de Moscou. Não tem carro. "Não daria para morar no centro, mas o metrô é ótimo."
O centro tem alguns dos aluguéis mais caros do mundo. Na gloriosa rua Tverskaia, centro de vida social desde a época dos czares e que desemboca no Kremlin, pode-se achar preços que vão de US$ 5.000 até astronômicos US$ 75 mil mensais.
"Para mim, o conceito de classe média é bem estranho na Rússia. É algo muito recente. A era Putin erradicou a pobreza extrema, eu diria, mas ainda há milhões que vivem com entre US$ 5 e US$ 10 por dia", afirma Katya Malofeeva, analista da corretora Renaissance Capital, gigante do ramo no país.
Segundo a maior seguradora russa, Rosgosstrakh, a diferença entre o que ganham os 10% mais ricos e os 10% mais pobres está em 25 vezes. A base da pirâmide é visível na periferia de Moscou, mas principalmente nas distantes regiões do maior país do mundo.

A leste dos Urais
A região ao leste dos Urais é um grande vazio: 120 milhões dos 142 milhões de russos vivem na parte "européia" do país, a oeste dos majestosos montes. "O interior está muito mal", afirma Malofeeva, "e as pessoas estão saindo ou morrendo nas ruas, basta ver a queda demográfica". A Rússia perdeu quase 4 milhões de habitantes desde 1999. Um estudo recente da Academia Russa de Ciências apontou que cerca de 20 milhões de pessoas vivem em indigência, nas ruas do país.
O quadro é heterogêneo, mas deve ser considerado positivo. O PIB per capita, ainda que comporte todas as distorções da injustiça social, subiu de US$ 1.343 em 1999 para US$ 8.450 em 2007 -o Brasil está em US$ 5.700, segundo o IBGE.
Mas se Putin foi nomeado o "czar de US$ 1 trilhão", que é a cifra de quanto o país ganhou com o petróleo e o gás no seu governo, os riscos de problemas à frente devido a essa dependência são muito grandes.
"É meio como uma corrida entre um cavalo e um jumento. O cavalo é movido pelo gás e pelo petróleo e representa o crescimento. Já o jumento está carregando os suprimentos, que são reformas legais, da indústria, e está se esforçando para conseguir ficar no páreo", compara Chris Weafer, estrategista-chefe da Uralsib.
Ele sustenta que Putin fez o mais difícil, que foi colocar ordem na casa. O crescimento está em asiáticos 7,3%.

Como no Brasil
Mas, como concordam Weafer e Malofeeva, o risco de se viciar em petróleo caro é grande. O dinheiro entra, distribui-se algo dele, e os fundamentos econômicos vão para o espaço. Assim, enquanto o rublo se fortalece, travando as exportações, na vida real a inflação vira o tema central de preocupação. "Nada preocupa mais o russo", sentencia Malofeeva.
Outro problema de fundo é a indústria do país. Chris Weafer sustenta que Putin usou seus dois primeiros mandatos para reorganizar o setor. O que foi considerado estratégico, como energia e defesa, foi devidamente reestatizado.
Segundo Weafer, o que irá acontecer a partir de 2008 é a indução do Estado nesses setores. Uma espécie de PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) local, visando atrair capital estrangeiro ou doméstico para os 49% de ações que as empresas controladas pelo Kremlin dispõem ao público e para parcerias.
Mais investimento, busca de estabilidade, reformas de base, melhoria na infra-estrutura pobre -parece o glossário econômico brasileiro.
Tudo isso aliado à versão local do Bolsa Família, que é o aumento nas pensões. Haverá um em dezembro, de 15%. Como entre 15% e 25% das famílias do país dependem desses subsídios, segundo a Rosgosstrakh, não é uma ajuda desprezível.
Com todos seus artificialismos e riscos, a economia ajuda a compreender o apoio quase unânime que Putin parece receber. "Para os investidores, é melhor que Putin mantenha as rédeas", diz Weafer. Resta saber se isso será melhor para Lyubov -que, aliás, hoje votará no partido de Putin.
(IGOR GIELOW)


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