São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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A MORTE DO PAPA

ARTIGO

O homem e o papa

CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA

Em livro recente , publicado em 1978, logo após o segundo conclave daquele ano, o sociólogo norte-americano Andrew M. Greeley fez o perfil do papel atual de um papa, do que se esperava de um papa e, até certo ponto, do que um papa precisa. "Um líder religioso", disse Greeley, "tem grande poder sobre os acontecimentos, precisamente por apelar para o que existe de nobre na natureza humana".
À falta de lideranças efetivas, carismáticas ou não, todos sentimos (e os órgãos de comunicação foram os primeiros a detectar essa necessidade) que o palco estava preparado para o surgimento de um grande ator, de um grande personagem que faltava ao mundo. Esse personagem poderia ser um presidente dos Estados Unidos, um primeiro-ministro da então União Soviética, um cientista notável que abrisse novos caminhos para a humanidade. Mas as perspectivas estavam sombrias em matéria de liderança. Os Estados Unidos não souberam arranjar uma solução para o binômio Carter-Reagan. A ex-União Soviética mantinha um funcionário categorizado para substituir Brejnev: mudava-se o parafuso, mas a máquina continuava.
No setor da ciência, tirante esparsos investimentos na área da saúde e da tecnologia, o grosso estava concentrado no desenvolvimento do equipamento bélico. Então, a pergunta: por que a igreja não daria ao mundo, mais uma vez, um grande papa?
Muitos deles se tornaram notáveis como políticos e diplomatas, dirimiram questões delicadas no cenário mundial, aliviaram tensões através de gestões muitas vezes sigilosas. Mas esse papel político-diplomático foi perdendo importância, esvaziando-se mais e mais. Afinal, como dizia Stálin, o papa não tem divisões de infantaria e artilharia nem dispõe de arsenal atômico. Mas, acentuava Greeley, "paradoxalmente, foi o fato de perder o seu tradicional papel político e diplomático que acabou valorizando o papa perante os donos temporais da Terra: a liderança religiosa, pura e simples, acabou por ter enorme impacto político".
Mais adiante: "O próximo papa estará na casa da maior parte das famílias. Será visto, pessoalmente, por muitas famílias a mais. Terá um público que nunca outro líder religioso em toda a história teve igual. Hesitante ou a contragosto, terá que usá-lo. Até que ponto o novo papa possuirá ou não essas qualidades será percebido claramente pelo povo, por mais povo do que nunca, e terá sobre o povo um impacto fortíssimo".
João Paulo 2º teve o seu retrato falado bem antes de sua eleição. Seu visual, sua virilidade, sua estudada postura de ex-ator que compreende a importância da expressão corporal, estariam colocadas a serviço de uma tarefa "full-time": ser papa.
Sua piedade não era carola, vulgar, seu conhecimento do mundo não era livresco, apesar de ser um "scholar", doutorado no Angelicum, de Roma, tendo defendido tese sobre Max Scheler e a fenomenologia de Husserl. Sua fé trazia a marca de um grande testemunho. Vindo da Igreja do Silêncio, nenhum outro homem falaria tanto ao mundo. E, ao mesmo tempo, nunca um homem da Terra falou tanto do homem que não é só desta Terra.
No vazio das lideranças, no espaço que a era eletrônica tornou definitivamente maior e instantâneo, a igreja mais uma vez assumia uma "pole position", saindo à frente com seu colorido, vigoroso e inesperado chefe. Repetindo uma fase do passado, a igreja parecia penetrar em Nova Renascença, uma Renascença Eletrônica, com uma volta ao passado, mas, ao mesmo tempo, com um arsenal moderno. E o mundo, querendo ou não, descobria que estava obrigado a se ocupar e preocupar com ela. Em pouco tempo de pontificado, a personalidade de Karol Wojtyla demonstrava que não entrara na história para ser apenas um nome na lista do Anuário Pontifício e um verbete nas enciclopédias. Os desafios que teve pela frente foram cada vez mais dramáticos. Independente do curso de sua atuação pública, como líder religioso e como estadista. Logo revelaria o bastante: ele saberia encontrar o homem na sua nudez de barro e no seu sopro de eternidade.


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