São Paulo, terça-feira, 03 de agosto de 2010

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MINHA HISTÓRIA MATTHEW KATKA, 21

Marcas da guerra


Ouvia as balas passando perto de mim, e tudo parecia estar em câmera lenta Tudo está bem, estou vivo. Tem muita gente pior do que eu. Sou um dos sortudos Primeiro voltei a falar. Depois demorei uns sete meses para ler de novo


RESUMO
Matthew Katka é 1 de mais de 2.000 veteranos do Iraque e do Afeganistão com lesões cerebrais decorrentes de concussões repetidas ou tiros que passaram pelo hospital militar Walter Reed, em Washington.
Epicentro do atendimento a militares nos EUA, o Walter Reed é especializado também em soldados amputados -1.024 desde 2001- e que sofrem de síndrome do estresse pós-traumático. Este último problema, segundo o próprio centro de saúde, afeta em graus variados 100% dos veteranos.
A Folha visitou o Walter Reed, de acesso ultrarrestrito, no mês passado. O centro fecha as portas em setembro, transferindo serviços para dois outros hospitais da região.

ANDREA MURTA
DE WASHINGTON

Desde pequeno sempre pensei que seria legal entrar para o Exército, mas não sabia se faria isso mesmo. Aí precisei de dinheiro para ir para a faculdade e pensei que seria uma boa forma de conseguir. E poderia sair um pouco de casa e ver o mundo.
Já estou nas Forças Armadas há dois anos e meio. Como soldado de infantaria, fui enviado ao Afeganistão em janeiro de 2009, para a Província de Paktika (leste). Em 19 de julho, fui ferido numa patrulha. Levei um tiro na cabeça. A bala entrou por baixo do capacete e arrancou a parte de trás do meu crânio.
Me lembro de quase tudo daquele dia. Apaguei por um minuto ou dois, depois acordei e pensei, "uau, essa não foi legal". Tentei me mover e não consegui. Comecei a gritar por um amigo: "Ei, acho que me acertaram". Ele respondeu: "Não consigo te ouvir, estão atirando na gente!
Atire de volta se conseguir". Eu tentei, mas estava paralisado. Ouvia as balas passando perto de mim, e tudo parecia estar em câmera lenta. Era tudo muito estranho, mas de certa forma eu estava em paz. "Se morrer aqui", disse para mim mesmo, "vai ser rápido e indolor, então tudo bem". E desmaiei de novo. Estávamos no meio de uma grande emboscada, então levou algum tempo até que pudessem me retirar do local. Fui levado para a base de Bagram, onde induziram um coma e tiraram fragmentos de osso da minha cabeça.
Demorou dois dias para me levarem à base dos EUA na Alemanha. Foi lá que acordei, depois de uma semana e meia em coma, sem saber onde estava.

SEM PALAVRAS
Eu não conseguia falar. Não conseguia encontrar as palavras. Quando estava hospitalizado, lembro-me de alguém dizer "dois" perto de mim. Pouco depois, um médico me perguntou quanta dor eu estava sentindo [em escala de zero a dez] e eu só conseguia repetir: "dois". Ele disse: "Ah, você está ótimo!".
E eu pensava: "não, não, está doendo muito!". Mas não conseguia dizer nada. A memória também ficou prejudicada. Ficavam me perguntando onde eu estava, e eu só dizia: "Não faço nem ideia, só quero dormir".
Também tenho um pouco de estresse pós-traumático. Tenho pesadelos. Mas não é tão ruim assim. Se a bala tivesse atingido um centímetro mais para dentro do meu cérebro, eu teria ficado cego e paraplégico. Mas isso não aconteceu.
Quando contaram para a minha mãe que eu havia sido ferido na cabeça, ela disse: "Ah, a cabeça dele é bem forte". Eu pratiquei esporte a vida toda e já tive várias concussões. Para ela a ficha não caiu imediatamente. Quando viu a gravidade da situação, ficou arrasada.
Meus pais não entendiam nada do que eu tentava dizer. Começaram a levar um dicionário para o hospital e repetiam comigo o significado das palavras. Primeiro voltei a falar. Depois demorei uns sete meses para conseguir ler de novo. Ficava muito cansado e tinha dores de cabeça. Hoje tenho só às vezes, mas nem de longe tão fortes como antes.
Continuo com problemas com a memória recente. A dificuldade de encontrar palavras vem e vai. Mas estou trabalhando nisso. Outro problema é que perdi muito da minha visão periférica, então estou fazendo exercícios específicos. Também fiz fisioterapia para tentar voltar à antiga forma. Tive feridas nos pés que me deixaram imobilizado por quase quatro meses. Andar de novo deu bastante trabalho.

RETORNO
Se eu pudesse, voltaria para o Afeganistão. Mas provavelmente vou ter de sair do Exército, porque não consigo mais fazer o trabalho que fazia antes. Pretendo estudar de novo e vou começar um estágio no Departamento de Estado em segurança diplomática. Tudo está bem, eu estou vivo. Tem muita gente pior do que eu. Sou um dos sortudos.

Jovens americanos feridos e traumatizados em guerra se multiplicam nos EUA

folha.com.br/mu776743


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