São Paulo, sábado, 03 de novembro de 2001

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COMENTÁRIO

Talvez devêssemos pensar mais no Vietnã do que em Kosovo


A impressão que fica é a de um grupo de funcionários públicos abalados e despreparados


ARTHUR SCHLESINGER
ESPECIAL PARA O "THE INDEPENDENT"

O estado de espírito nos EUA, hoje, é de apreensão com o impasse militar no Afeganistão, com a erupção de antraz e, de forma incipiente mas já perceptível, com a competência de nossa liderança.
Eu enfatizaria apreensão, não pânico, histeria ou desespero. E certamente nenhuma desunião quanto aos objetivos do governo: punir Osama bin Laden e a Al Qaeda e vencer a campanha contra o terrorismo internacional. A apreensão deriva, na verdade, do fato de que a barbárie de 11 de setembro criou um sentimento pessoal de vulnerabilidade antes desconhecido.
Até mesmo Pearl Harbor, em muitos sentidos mais transformador do que o World Trade Center, não gerou sentimentos comparáveis de vulnerabilidade pessoal. Afinal, em 7 de dezembro de 1941, sabíamos quem era o inimigo; o ataque aconteceu em uma ilha remota no meio do Pacífico; o alvo era o poderio naval dos EUA, não civis cuidando de suas vidas. Hoje o inimigo está nas sombras, ataca cidades conhecidas e transforma as conveniências mais corriqueiras -aviões e cartas- em armas cruéis contra pessoas comuns.
Como observou o vice-presidente Dick Cheney, essa talvez seja a única guerra externa na história dos EUA em que mais americanos serão mortos no país do que no exterior. Cerca de um décimo do total de mortos americanos no Vietnã pereceu em um único dia, em Nova York.
Enquanto isso, a expectativa popular de um golpe devastador contra o Taleban foi cruelmente frustrada. As declarações otimistas de duas semanas atrás sobre a maneira pela qual as bombas americanas estavam dilacerando o inimigo deram lugar a comentários sombrios sobre a persistente resistência do Taleban. Evidentemente os nossos líderes apostaram na suposição de que a impopularidade do regime afegão implicaria num rápido colapso do Taleban. E parecem ter presumido que não seria muito difícil formar um governo pós-Taleban.
Uma série de erros de julgamento aconteceu. A liderança militar foi iludida pelo aparente sucesso da campanha de bombardeio em Kosovo. Talvez devêssemos ter pensado mais no Vietnã. Lançamos mais explosivos sobre aquele triste país do que a soma total de bombas empregada em todas as frentes de batalha na Segunda Guerra -e ainda assim não fomos capazes de deter o vietcongue. O Vietnã deveria ter lembrado nossos generais de que bombardeios têm impacto limitado sobre sociedades descentralizadas, rurais e subdesenvolvidas.
Bombardeios aéreos têm grande apelo para a maior parte dos governos americanos, porque eles minimizam as baixas. Mas as bombas também matam civis inimigos. As mortes de civis estão mobilizando voluntários pró-Bin Laden em todo o mundo muçulmano. Ainda não aprendemos como enfrentar o terrorismo sem criar novos terroristas.
Com o fracasso da ofensiva aérea, contemplamos, sem muito entusiasmo, a possibilidade de vencer a guerra por meio da Aliança do Norte, uma coleção dúbia de grupos tribais, oportunistas e mercenários apoiados pelos russos e detestados pela etnia pashtu -o maior grupo étnico afegão- e pelo Paquistão, um aliado crucial.
Se a Aliança do Norte não conseguir derrubar o Taleban, talvez tenhamos de enviar forças terrestres próprias. Será que o faremos apesar do severo inverno afegão, dos feriados religiosos muçulmanos e das minas terrestres? Ou esperaremos até a primavera? De qualquer forma, um atoleiro nos aguarda. Quanto ao regime pós-Taleban, ele desapareceu em um confuso emaranhado de disputas.
Os relatos conflitantes dos militares sobre o Afeganistão causaram "danos colaterais" e fizeram com que eles perdessem credibilidade. Relatos contraditórios sobre os perigos domésticos causaram danos igualmente graves.
A impressão que fica é a de um grupo de funcionários públicos abalados e despreparados. As exortações oficiais por um comportamento normal e, ao mesmo tempo, para que as pessoas relatem quaisquer acontecimentos suspeitos instantaneamente, confundem. As advertências do secretário da Justiça quanto a um novo ataque terrorista iminente parecem mais tentativas de cobrir a retaguarda do que um alerta confiável. Ele corre o mesmo risco do menino que gritava "lobo!".
Tudo isso suscita dúvidas sobre a competência de nossa liderança nacional. No começo, o governo Bush respondeu com eficiência. Semanas depois, os equívocos começam a se acumular, e o fluxo de informações para a imprensa e o público é irregular e inadequado. O presidente Bush cometeu seus erros. A questão é determinar se o líder aprende com seus erros ou não. Robert A. Lovett, secretário da Defesa do presidente Truman e um dos estadistas dominantes dos EUA no imediato pós-guerra, disse a Robert Kennedy: "O bom julgamento é em geral resultado da experiência. E a experiência muitas vezes resulta de erros de julgamento".


Arthur Schlesinger é historiador e foi assessor do presidente John Kennedy.



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