São Paulo, quarta-feira, 03 de novembro de 2004

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Onda conservadora independe de Bush


Mesmo os "liberais" têm apresentado políticas centristas nos últimos anos no país

Soros, odiado pela esquerda, investiu US$ 25 milhões contra a tendência à direita



CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A FILADÉLFIA

Os ódios e amores que George Walker Bush despertou, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, acabaram dando a impressão de que foi ele quem inventou o conservadorismo ou, como diz o jargão local, os neo-cons (de neo-conservadores). Falso: os Estados Unidos vêm guinando para o conservadorismo há 40 anos, a ponto de os republicanos terem vencido seis das nove eleições mais recentes (excluída a de ontem).
Das três outras, uma ficou com Jimmy Carter e duas com Bill Clinton, exatamente o político que trouxe o Partido Democrata para o centro, no discutível pressuposto de que ele era um partido de esquerda. Na verdade, o partido era "liberal", o rótulo que nos Estados Unidos se emprega para definir o máximo de esquerda que o país se permite.
Com Clinton, portanto, o Partido Democrata girou à direita.
"As grandes realizações de Clinton [a reforma da seguridade social, o equilíbrio orçamentário, uma Bolsa eufórica e a supressão de 350 mil empregos de funcionários federais] teriam encantado Ronald Reagan", escrevem os jornalistas britânicos John Micklethwait e Adrian Woolridge no livro "The Right Nation", que acabou se transformando numa espécie de bíblia do conservadorismo norte-americano.
Reagan foi a Margaret Thatcher dos EUA, como ícone do conservadorismo.
Claro que, com Bush e após os atentados de 11 de setembro de 2001, essa tendência foi levada ao paroxismo, a ponto de ter gerado uma das mais fortes ironias da história recente.
George Soros, o megainvestidor (ou especulador), que a esquerda adora odiar, acabou se transformando no 7º de Cavalaria que cuida de resgatá-la da corrida para a direita.
A explicação de Soros para estar investindo ao menos US$ 25 milhões para derrotar o ultraconservador presidente George Walker Bush é, talvez, a melhor definição em poucas palavras do que está acontecendo não apenas nos Estados Unidos mas no mundo todo, Brasil inclusive:
"Eu adoraria ser centrista. Mas o problema é que o centro passou à direita. Eu espero que volte para onde estava", afirmou o bilionário à revista "Newswek", que há duas semanas o transformou em tema da capa.
Soros não está sozinho nessa constatação de que o centro mudou-se para a direita.
Paul Krugman, o economista que é o maior crítico do presidente Bush na mídia norte-americana, também afirma se sentir deslocado neste cenário.
"Se sou considerado como muito à esquerda nos Estados Unidos é porque o país inclinou-se fortemente à direita. Na Europa, em matéria de política econômica, eu seria sem dúvida de centro-direita", disse Krugman ao jornal francês "Le Monde".
Na verdade, os Estados Unidos vem adernando à direita desde, paradoxalmente, a mais clamorosa derrota da direita ultraconservadora, na eleição de 1964, com Barry Goldwater.
A partir daí, mas principalmente depois que murchou a juvenil revolta de 1968 em todo o mundo, pouco a pouco os EUA foram retomando o seu "vocabulário político básico, que é a liberdade individual. Não é a grandeza do Estado, não é a igualdade, não é a fraternidade", como diz George Will, colunista conservador do jornal "The Washington Post", cujos textos são reproduzidos por 460 jornais norte-americanos.
Tem razão: pesquisa realizada em 2003 pelo respeitado Centro Pew de Pesquisas perguntava "o que é mais importante que o governo faça: garantir que ninguém passe necessidade ou assegurar a liberdade para que cada um persiga suas metas?".
Nos Estados Unidos, 58% preferiram a liberdade; já em países como a Alemanha, a França, a Itália e mesmo o Reino Unido, a porcentagem dos que preferem a igualdade foi sempre igual ou superior a 60%.

Maré conservadora
Foi tamanha a guinada para a direita que "liberal", como é chamada o que há de esquerda nos EUA, virou palavrão, usado abundantemente por Bush, durante a campanha eleitoral, exatamente na tentativa de desclassificar seu rival John Kerry.
É tão insistente a crítica que até o jornal mais conservador, "The Wall Street Journal", correu em defesa de Kerry, em editorial publicado na sexta-feira.
"Nada no desempenho de Kerry como senador ou como candidato democrata nos dá razão para suspeitar que, como presidente, ele procuraria alterar dramaticamente os contornos básicos da vida americana", diz o texto.
Uma alteração drástica seria contrariar profundamente o instinto básico da sociedade norte-americana, a única das grandes democracias ocidentais que jamais teve um governo de esquerda, esquerda mesmo.
Esse instinto basicamente conservador foi ainda mais atiçado pelos atentados de 11 de setembro. Reacenderam duas características igualmente básicas no norte-americano: o patriotismo (91% se disseram "muito patriotas", também em pesquisa do Centro Pew) e uma religiosidade muito particular (mais de 80% dos norte-americanos dizem que acreditam em Deus, e 58% pensam que quem não acredita em Deus não pode ser uma pessoa com moral).
O problema é que essa marcha batida para a direita dos partidos pode ter sido absorvida em termos econômicos, na medida em que é cada vez menor a crença em um Estado intervencionista. Mas, no plano moral, produziu-se uma fortíssima cisão, que é uma das grandes marcas da eleição-2004.
Há uma polarização, talvez inédita, em torno de temas como aborto, casamento gay, pesquisa com células tronco, ambiente. Mas começa a haver, igualmente, resmungos sobre a crescente desigualdade social causada por políticas que tanto democratas como republicanos praticam e praticaram.
"A renda está atualmente mais concentrada do que jamais, desde os anos 20", reclama, por exemplo, Tom Frank, um autor de esquerda.
Por tudo isso, fica mais fácil de se entender a cruzada de um bilionário como Soros para recentrar o país quando se ouve John Zogby, cuja tarefa é exatamente a de medir os humores da opinião pública norte-americana:
"Os Estados Unidos vão às eleições em um contexto de duas nações em conflito, iguais em tamanho, e polarizadas mais do que alguém já viu no nosso tempo de vida. Polarizadas culturalmente, espiritualmente, demograficamente e ideologicamente".


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