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Veneno que matou espião é raridade
Fruto da desintegração de átomos de urânio, polônio 210 só pode ser produzido em reator especial; a Rússia tem um
Elemento radiativo é 250 bilhões de vezes mais tóxico que cianureto, mas pode ser levado com segurança em frasco de vidro bem fechado
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
A vida, às vezes, pode ser
muito pior que a arte. Nem
mesmo escritores de romances
de espionagem, como Ian
"007" Fleming, ousaram imaginar o assassinato de algum de
seus personagens com o altamente mortal polônio 210, usado para dar cabo do ex-espião
russo Alexander Litvinenko.
O ex-espião, que estava exilado havia seis anos, morreu em
Londres no dia 23 de novembro, 22 dias depois de apresentar os primeiros sintomas de
contaminação.
Esse elemento radiativo é tão
raro e tão tóxico que simplesmente não existem estudos sobre qual é a dose letal para humanos. "Sabe-se que a quantidade letal para cobaias de laboratório é de aproximadamente
8,84 nanogramas [bilionésimos
de grama] por quilo de peso",
disse à Folha a bioquímica
Sandra Bellintani, do Ipen
(Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares).
Se parece pouco para você, é
mesmo: Bellintani ressalta que
a sensibilidade de humanos à
radiação é menor que a das cobaias -portanto, a dose letal
humana deve ser maior.
Perto do Po-210, até mesmo
o cianureto, veneno por excelência dos espiões, parece inofensivo: o elemento químico
que matou Litvinenko é 250 bilhões de vezes mais tóxico.
Veneno raro
O polônio é um dos elementos mais raros da natureza. Ele
é produzido pelo decaimento
(desintegração) do átomo de
urânio, que tem um núcleo extremamente pesado e, portanto, instável. Para cada tonelada
de urânio e tório existentes na
Terra, há apenas cem milésimos de grama de Po-210. Ele
está presente normalmente no
solo, em alguns lugares mais do
que em outros. No Brasil ocorre, por exemplo, nas areias de
Guarapari (ES), ricas em tório.
A ocorrência natural faz com
que todos os seres humanos tenham também uma certa quantidade desse elemento no organismo: cerca de 20 becquerels
(unidade de medida de radioatividade).
Fumantes têm bem mais: um
único cigarro contém até 75
milésimos de becquerel, e estima-se que o polônio seja um
dos fatores de risco de morte
por câncer em tabagistas.
Para fabricar o elemento em
usinas nucleares, é necessário
usar um tipo especial de reator
nuclear conhecido como FBR,
ou "fast breeder". Só existem
dois em operação no planeta
-um deles na Rússia, de onde
se suspeita que tenha partido a
ordem para o assassinato. Estima-se que a produção mundial
de Po-210 seja de meros cem
gramas por ano.
O Po-210 pertence à categoria dos chamados alfa-emissores. Trata-se de elementos com
núcleos atômicos grandes, que
emitem radiação em forma de
partículas alfa, compostas por
dois prótons e dois nêutrons.
Outros elementos radiativos,
como o césio-137 que vitimou
moradores de Goiânia na década de 1980, emitem partículas
beta e raios gama, altamente
energéticos e capazes de atravessar até paredes.
Como são muito pesadas, as
partículas alfa não conseguem
viajar muito longe. Isso torna o
polônio um elemento radiativo
relativamente fácil de conter.
Vidro bem fechado
"Sua radiação não consegue
atravessar nem uma folha de
papel", diz Bellintani. Um frasco de vidro bem fechado, portanto, não traria nenhuma dificuldade para ser transportado
pelo assassino de Litvinenko.
Essa incapacidade de atravessar tecidos do corpo, por um
lado, torna o polônio difícil de
ser passado de uma pessoa envenenada a outra. Por outro, é
justamente o que o faz tão letal.
"Ele se deposita nos tecidos
moles do organismo, encosta
nas células e libera nelas sua
energia", disse Bellintani. A radiação arranca elétrons das
moléculas que formam as células, destruindo-as. O resultado
é uma morte lenta e inexorável,
já que o Po-210 tem uma meia-vida de até 50 dias no corpo.
Do Nobel para a KGB
Ironicamente, o polônio foi o
primeiro elemento químico batizado para chamar atenção para uma causa política -que,
aliás, envolvia a Rússia.
Sua descoberta foi feita em
1898 por Marie Curie enquanto
estudava as propriedades da
pechblenda, o minério de urânio. O achado daria à cientista o
Nobel de Física de 1911.
Batizado inicialmente de "rádio-F", por ser produzido durante o decaimento do átomo
de rádio, ele foi depois rebatizado em homenagem à Polônia,
terra natal de Curie. Segundo
Krystyna Kabzynska, do Museu Marie Curie de Varsóvia, a
esperança da pesquisadora era
alertar o mundo para a causa de
seu país, na época ocupado por
russos, austríacos e prussianos.
Se escolheu esse veneno para
liqüidar um dissidente político,
o serviço secreto russo, que tem
no presidente Vladimir Putin
um de seus ex-funcionários
mais ilustres, dificilmente poderia ter dado um recado mais
claro.
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