São Paulo, terça-feira, 04 de junho de 2002

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ARTIGO

Mudança no FBI é uma farsa

WILLIAM SAFIRE
DO "THE NEW YORK TIMES"

Sob os poderes policiais com os quais operou no ano passado, e com a cooperação legal de uma CIA mais bem administrada, um FBI dirigido com mais eficácia poderia muito bem ter prevenido a catástrofe de 11 de setembro. Essa é uma probabilidade assustadora que uma investigação realizada pelo Congresso vai começar a mostrar, nesta semana.
Para produzir um álibi que explique sua omissão e acobertar a constrangedora redução do orçamento das operações de contraterrorismo promovida por sua pasta no ano passado, o secretário da Justiça, John Ashcroft, jogou por terra diretrizes fixadas havia uma geração para impedir o abuso da força policial pelo governo federal. Ele o fez em conjunto com seu assessor escolhido a dedo, o diretor do FBI, Robert "J. Edgar" Mueller [referência a J. Edgar Hoover (1895-1972), controvertido diretor do FBI de 1924 a 1972].
Eles o fizeram por meio de decreto executivo: não houve discussão pública nem ação do Congresso ou orientação judicial. Se tivéssemos tido esses novos poderes no ano passado, diz a farsa com a qual procuram se proteger das críticas, poderíamos ter impedido a ação terrorista.
Não é verdade. Eles tinham o poder necessário para obter as informações. O que lhes faltou foi usar seu intelecto para analisar os dados colhidos pelas agências.
Vemos, assim, que novos poderes de vigilância estão sendo invocados como cortina de fumaça, visando a esconder o fato de que os poderes antigos não foram devidamente utilizados.
Ashcroft alega que está meramente autorizando a polícia federal a estar presente a eventos públicos ou a navegar pela internet, o que "até mesmo uma criança de 12 anos pode fazer". Mentira: é claro que, sob as diretrizes anteriores de combate a abusos, o FBI podia perfeitamente enviar um agente a um jogo de beisebol, a uma igreja ou a um comício.
Tudo o que precisaria seria "uma informação ou alegação que, para ser tratada de maneira responsável, exigiria investigação adicional". Para poder investigar um crime, a polícia federal não precisava sequer de "causa provável" -bastava uma informação ou pista sobre possíveis infrações.
A mesma coisa se aplica a navegar pela internet, ler um jornal ou assistir aos jornais na TV. Em muitos casos, é assim que os agente do FBI em campo eram alertados para um crime potencial, podendo, então, abrir um inquérito preliminar.
Se uma pista rendesse "indícios razoáveis de atividade criminosa", os agentes podiam lançar uma investigação plena sem se reportar à sede. Isso incluía a contratação de informantes, montagem de tocaia para vigiar uma casa e busca de autorização para fazer revistas e grampear telefones.
Sob o novo decreto imposto por Ashcroft e Mueller, o necessário indício de atividade criminosa potencial é eliminado. Sem dispor de um fragmento que seja de evidências de que um crime esteja sendo cometido, os policiais federais poderão levar adiante investigações plenas pelo prazo de um ano. O objetivo é gerar suspeitas de conduta criminosa. É a própria definição de "pescaria".
Os representantes do governo dizem que não precisamos nos preocupar -eles não pretendem compilar dossiês sobre indivíduos, grupos de igreja ou clubes políticos, o tipo de abuso que reprimia as vozes discordantes nos "maus velhos tempos".
Só porque os chefes do FBI são analfabetos em termos de informática, será que pensam que o público desconhece a capacidade que têm os tecnólogos de hoje de juntar relatórios de vigilância do governo, nomes registrados em listas de membros e filiados e a busca de dados conduzida por detetives particulares, de modo a criar dossiês instantâneos sobre americanos seguidores da lei?
Considere o novo alcance do poder federal: a declaração de imposto de renda; as notas na faculdade; as avaliações profissionais; as compras com cartão de crédito; as contribuições para grupos políticos e associações beneficentes; as compras em farmácias; os documentos de seguro; as assinaturas de jornais e revistas; cada visita a site da internet; cada comentário em cada sala de bate-papo; cada livro ou filme comprado ou consultado na Amazon.com -tudo isso se soma às passagens aéreas e aos ingressos, aos registros de prisões, a investigações eventuais e às queixas feitas por vizinhos irados ou amantes rejeitados que chegam ao FBI.
Todos os dados pessoais de um cidadão estão ali mesmo, na encruzilhada do marketing moderno com a ação policial federal moderna. E tudo isso em nome da guerra contra o terrorismo.
Não estamos falando de algum pesadelo sobre o que pode vir a acontecer algum dia. Já aconteceu na semana passada.
Jim Sensenbrenner, presidente da comissão judiciária da Câmara dos Deputados, disse que a eliminação das restrições o deixa "incomodado"; Pat Leahy, da comissão judiciária do Senado, está ocupado demais bloqueando a ação de juízes para ter tempo de fazer objeções.
Alguns libertários otimistas estão dispostos a tolerar essa perda de liberdade pessoal na esperança de que as normas de intromissão decretadas por Ashcroft e Mueller possam prevenir um atentado. Isso não vai acontecer, porque essas normas são uma farsa.


Tradução de Clara Allain


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