São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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CIDADANIA GLOBAL

Richard Falk propõe um novo Parlamento para tornar mais democrático o sistema político mundial

Jurista quer criação de assembléia dos povos

Associated Press - 3.ago.2001
Manifestantes em Frankfurt protestam contra a deportação de estrangeiros ilegais com faixa que diz: "Esmaguem as fronteiras"


DA REDAÇÃO

O professor de direito internacional da Universidade de Princeton Richard Falk, 71, é um dos maiores especialistas do mundo em direitos humanos. Já escreveu mais de 20 livros e é consultor da ONU sobre o assunto.
Em 1994, no ensaio "The Making of Global Citizenship" (a construção da cidadania global), ele identificou cinco tipos de cidadãos globais -o homem de negócios transnacional, o cidadão supranacional, o reformador e o administrador globais e o ativista internacional - e cunhou os termos "globalização de cima para baixo" e "globalização de baixo para cima".
Na semana passada, Falk falou à Folha, por telefone, de sua casa em Princeton (Nova Jersey), sobre o que ocorreu com os cidadãos globais nos últimos oito anos, especialmente após 11 de setembro. Ele também explicou o que seria a "assembléia global dos povos" que propõe.
Leia, a seguir, os principais trechos. (MARIA BRANT)

Folha - Em 1994, o sr. escreveu um texto classificando os cidadãos globais em cinco categorias. Elas permanecem? O que mudou?
Falk -
Essas categorias continuam a refletir diferentes tendências na vida internacional, mas o impacto de 11 de setembro empurrou os ativistas, por exemplo, para o pano de fundo político. A situação fundamental não mudou, mas a atmosfera geopolítica é diferente. A agenda da segurança é mais importante do que era nos anos 90, e a reação dos EUA a 11 de setembro enfatizou preocupações diferentes com a cidadania. Isso criou um "revival" de nacionalismos muito tradicionais e patriotismos territoriais que representavam o tipo de cidadania ligada ao Estado nacional. Mas há uma tendência oposta derivada do entendimento de que o terrorismo mina a importância de fronteiras nacionais. E que, portanto, uma reação adequada a ele tem de ser coletiva.

Folha - A cientista política britânica Mary Kaldor diz que se a sociedade civil não assumir uma posição contrária ao terrorismo, vai perder importância. O que o sr. acha?
Falk -
Essencialmente, concordo. Tanto o terrorismo como a reação exagerada dos EUA pedem um movimento unificado de resistência dentro da sociedade civil. Mas tem de ser um movimento que não enfatize tanto quanto os anteriores questões ambientais e econômicas específicas, que olhem de forma mais geral para a necessidade de se criar um sistema mundial democrático, justo e sustentável. Poderíamos chamá-lo de um movimento pós-moderno da sociedade civil.

Folha - O sr. defende a idéia de uma assembléia global dos povos. O que seria essa instituição?
Falk -
A idéia básica é encontrar alguma representação institucional para os povos do mundo que não dependa de governos atuando em nome do povo. Mas não há uma fórmula. Parte do processo democrático seria dar à assembléia sua forma e estrutura.

Folha - Sobre o que legislaria?
Falk -
Ela começaria de forma bastante modesta, como um órgão para formar consensos, sem nenhuma autoridade legislativa. Gradualmente, passaria a assumir um papel legislativo mais tradicional, conforme aumentasse sua influência e estabelecesse seu prestígio e reputação. A experiência européia é útil: o Parlamento Europeu foi por muitos anos tratado como algo quase inútil, mas, por meio de sua persistência e da percepção de que era importante equilibrar a integração econômica com a integração política, ele adquiriu algum poder real para moldar as políticas européias.

Folha - Ela seria ligada à ONU?
Falk -
O ideal seria tê-la dentro da estrutura da ONU. Mas se os Estados poderosos resistissem a essa iniciativa -o que é provável em um futuro próximo-, acho que ela poderia, ao menos no começo, ser instituída como uma presença institucional independente. Ela poderia ser criada por um tratado de Estados-membros fundadores que estabeleceriam um mínimo de, digamos, 30 Estados ratificando o tratado para que ela passasse a existir. Um pouco como o TPI (Tribunal Penal Internacional), que foi estabelecido por um tratado que passou a existir quando 60 países o ratificaram.

Folha - Mas os Estados concordariam em ratificar uma instituição que governaria sobre eles?
Falk -
Há muitos governos que sentem que é importante estender o governo da lei e da democracia para um cenário global. E uma instituição como essa não seria necessariamente muito ameaçadora a muitos governos. Na verdade, daria a eles mais uma forma de expressarem suas insatisfações sobre a forma pela qual o mundo é organizado. Também acho que muitos governos prefeririam que expressões de oposição às políticas globais ocorressem dentro de uma estrutura mais ordenada e, portanto, não se importariam com a existência dessa assembléia como uma forma de expressar e satisfazer essa pressão por um sistema mundial mais democrático.
Ela seria ameaçadora principalmente para os atores geopolíticos do sistema. Os EUA e a China, por exemplo, não aceitariam essa iniciativa de bom grado.

Folha - E qual seria o poder real de uma instituição internacional não reconhecida pelos EUA?
Falk -
É preciso testar essa resistência dos EUA. Não é algo que continuará indefinidamente. Acho que é provável que ocorra uma reação dentro dos EUA a esse unilateralismo associado ao governo Bush. É claro que ter o apoio dos EUA ajudaria, mas não acho que nesse momento seja necessariamente fatal ter sua oposição. Em outras palavras, concretizar uma iniciativa como essa é melhor do que nada. Isso permitiria às pessoas aqui nos EUA que gostariam de ver um sistema mundial mais democrático fazerem pressão sobre seu próprio governo para que fosse mais participante nesse processo.

Folha - Com que tipo de questões essa assembléia lidaria?
Falk -
Certamente lidaria com essas questões. A agenda seria definida pelos participantes. Naturalmente, questões como os direitos humanos, o ambiente, o perdão da dívida, as barreiras comerciais, o FMI, o Banco Mundial, estariam no centro das atividades de uma instituição como essa.

Folha - Como o sr. relaciona a simultânea ascensão da direita e os altos níveis de abstenção eleitoral na Europa e o crescente interesse por política e ativismo globais?
Falk -
Em momentos de transformações básicas no sistema mundial, há reações contraditórias. Um conjunto de reações tenta reviver as formas mais rígidas do velho sistema e outro tenta gerar a base para um novo sistema.

Folha - O sr. concorda com a afirmação de que há uma perda de fé e de esperança na política nacional?
Falk -
Sim, definitivamente. O velho sistema não está funcionando para um grande número de pessoas. Uma minoria tenta encontrar um novo sistema, e outra tenta voltar ao velho sistema. Mas a maioria está desencantada e não participa. Isso certamente é verdadeiro nos EUA, onde houve um fracasso da democracia representativa e os dois partidos políticos são incapazes de dar escolhas políticas aos cidadãos.

Folha - O sr. inventou em 1994 os termos "globalização de cima para baixo" e "globalização de baixo para cima". Desde então, os esforços da "globalização de baixo para cima" produziram resultados?
Falk -
Mais uma vez, o 11 de setembro foi muito importante, pois até certo ponto interrompeu esses esforços e um crescente movimento que combatia a injustiça produzida pela globalização.

Folha - Mas e até 11 de setembro, houve progresso?
Falk -
É difícil dizer, porque era difícil distinguir entre ajustes reais no sistema e esforços de relações públicas para convencer as pessoas de que os que operavam dentro da estrutura da "globalização de cima para baixo" estavam agindo de forma responsável. É muito difícil avaliar, mas acho que era um movimento crescente que estava se tornando mais consciente de si, mais unificado, que estava enfatizando objetivos reais de reforma global. E acho que havia um número crescente de pessoas no mundo corporativo e financeiro e político que viam como algo necessário elaborar algum tipo de acomodação.

Folha - Como o sr. vê o futuro desses movimentos?
Falk -
É difícil prever o futuro agora. O que discutimos antes, sobre movimentos da sociedade civil se tornarem mais unificados e focalizados na democracia é provavelmente uma tendência positiva. Mas se isso se traduz em resultados políticos na presente atmosfera global não está nem um pouco claro para mim. Estamos em um momento em que é preciso esperar e ver se surgirá um novo período de ativismo político e a criatividade para achar formas de exercer influência efetiva.


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