São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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TRAGÉDIA NOS EUA

Repórter narra 24 horas dos Lawrence, ilhados no Mississippi

Família em Biloxi se une sob medo e nervosismo

PEDRO DIAS LEITE
DO ENVIADO ESPECIAL A BILOXI

Nas noites que se seguiram à passagem do Katrina, o toque de recolher em Biloxi era irrelevante. As ruas da cidadezinha do Mississippi estavam desertas. As casas, escuras e vazias, cheias só com a lama que tomou todos os cômodos quando a água baixou.
Numa das poucas casas da cidade do litoral do Estado em que havia gente, Christopher Lawrence Jr., 77, reunia sua família ao redor da mesa na última quarta-feira à noite para dar instruções. "Se alguém ouvir qualquer barulho, me chame. Tenho algo para dar a eles, eu tenho meu Smith & Wesson", dizia o militar reformado.
Lawrence foi um dos poucos habitantes de sua região da cidade que permaneceram em Biloxi durante o furacão. Ao lado do primo e vizinho Jerry Wayne, 71, agüentou-se em cima de uma estante quando a água subiu. "Não senti a casa se movendo muito nem nada. Eu me sinto seguro aqui. Meu avô construiu essa casa, é o lugar mais seguro da cidade. Em cem anos, nunca tinha nem entrado água", conta Lawrence.
Na noite da quarta-feira, ele parecia quase lamentar a chegada da família, que veio das duas costas dos EUA para saber se ele estava bem e ajudá-lo a salvar aquilo que restou.
"Para falar a verdade, fiquei um pouco bravo [com a vinda de todos], não tinha nada para eles fazerem, e também acabei sem nada para oferecer."
Uma das filhas, Laura Carr, 41, viajou de avião de Los Angeles, perto de onde mora, até Mobile, de onde alugou um carro.
A outra filha, Kimberly, 43, voou de Maryland, no outro extremo do país, com a mãe, Catherine, 70. O caçula, Christopher 3º, dirigiu 17 horas, também de Maryland, para tentar chegar antes e prestar auxílio ao pai.

Em busca de corpos
Na manhã de quarta-feira, quase 48 horas depois da passagem do furacão, funcionários da prefeitura de Biloxi passaram de casa em casa na rua, chamando para saber se havia alguém, arrombando portas para tentar encontrar corpos.
"Eu disse a eles que todo mundo tinha ido embora. As pessoas ainda têm medo do Camille [furacão que passou pela região em 1969 e deixou quase 150 mortos]. Mas esse foi mais fraquinho", afirmou Lawrence pai.
O fato é que, apesar da valentia no discurso, restavam poucas forças. "Quando cheguei aqui, ele estava quente, muito abatido, achei que fosse morrer", diz o filho, o primeiro a chegar, ao meio-dia e meia de quarta-feira. Desde segunda-feira, Lawrence e Wayne limpavam incessantemente a casa, sem descansar e comer.
À noite, com a família reunida, o medo era outro. Passou da limpeza à segurança. O grosso da lama já havia sido retirado, mas o temor agora vinha de fora. O gerador que mantinha a geladeira funcionando foi acorrentado a duas vigas que permaneciam de pé. O estoque de gasolina foi levado para dentro de casa. O Smith & Wesson (revólver) ficou com o pai. Um rifle de caça, com o filho.
Depois que todos foram deitar, quase à meia-noite, a movimentação continuava. Alguém sempre se levanta ao menor barulho. Nunca há ninguém. Muitas vezes são apenas cachorros, à procura do dono ou de comida. Em outras, não se vê nada.

Barulho
Às 2h15, quando um som que parecia de alguém no jardim surgiu, Lawrence, 77, levantou correndo e saiu, de lanterna e revólver na mão. "Quem está aí?", gritou. Não houve resposta. A partir dessa hora, as velas foram todas acesas, para mostrar que a casa tinha gente acordada. Lawrence ficou na varanda da frente. O caçula na varanda de trás.
Mas o resto da noite transcorreu tranqüilo. Na manhã de quinta-feira, três dias depois do furacão, os primeiros moradores começaram a chegar para ver o que havia sobrado. "Não restou nada", falou um casal, com o rosto coberto para evitar o mau cheiro dentro de casa. Os dois não quiseram dar o nome. "Essa tragédia é nossa, de mais ninguém", disseram.
O pórtico que cobria a varanda na frente tinha caído e bloqueava a entrada. Pela porta de trás, entrava-se na sala. Dentro da casa, móveis estavam amontoados, cheios de lama, imprestáveis.
Na casa em frente à de Lawrence, um casal de negros brincava com a situação. "Minha mãe veio aqui ontem e levou a TV e o DVD, que se salvaram porque estavam no alto. Mas o que ela mais tinha medo é que a polícia achasse que ela também era uma saqueadora", fala, gargalhando, Sylvia, sobre sua mãe, de 68 anos.
As histórias de vizinhos, de gente sozinha tentando salvar o que tem, levam a família de Lawrence a exaltar sua própria união. "Minha filha Laura mora em uma casa de US$ 4 milhões na Califórnia, perto de um campo de golfe. Ela é do "jet-set". Mas quando o pai precisa dela, onde ela está? De joelhos, aqui, esfregando o chão", conta Catherine.
"Nossa família é muito unida. Meu pai e minha mãe são casados há mais de 50 anos. Os quatro filhos [uma, Amy, teve de ficar trabalhando] também são, não tem uma separação. Nove netos. Essa é a nossa educação", fala a filha mais velha, Kimberly.

Desaparecidos
Mas nem só as famílias se unem nessas horas. Apesar dos relatos e mais relatos de saques e de brigas, vizinhos também tentam se ajudar em meio à catástrofe.
Quando a mãe dava entrevista para a Folha na varanda, um vizinho se aproxima. Pergunta se alguém quer gelo, ou cobertores. O gelo, conseguiu numa fila de distribuição, mas não vai usar tudo. O cobertor foi uma das poucas coisas que não se molharam em sua casa e não vai ser usado, porque ele decidiu partir para a casa de familiares na Califórnia.
Numa cidade sem telefone, fixo ou celular, o boca-a-boca tem outra grande utilidade. A busca pelos desaparecidos. A filha de Jerry Wayne, Jeree, 23, quer saber onde está a mãe. Chorando ao lado do filho, Danny Jr., 5, pergunta a todos nas ruas de Biloxi se sabem se ela conseguiu partir ou não. Ninguém tem notícias.
Na TV, a toda hora as redes americanas transmitem mensagens de parentes, de gente que se encontrou pelo rádio, pela internet, por imagens que são veiculadas pelos canais.

Por que ficar?
Mas com um histórico de tanta tragédia, muita gente se pergunta por que as pessoas insistem em viver na região, tanto em relação aos que ficam para resistir ao furacão quanto aos que se abrigam em outros Estados. Segundo moradores de Biloxi, Gulfport e D'Iberville, a resposta é uma só: passado. É gente cuja família está na região há gerações, que não quer deixar para trás sua história.
"Eu nunca saio. Meu avô passou essa casa para o meu pai, que passou para mim. Eu vou passar para o meu filho, que vai passar para o filho dele", justifica Christopher Lawrence.


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