|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TRAGÉDIA NOS EUA
Repórter narra 24 horas dos Lawrence, ilhados no Mississippi
Família em
Biloxi se une
sob medo e
nervosismo
PEDRO DIAS LEITE
DO ENVIADO ESPECIAL A BILOXI
Nas noites que se seguiram à
passagem do Katrina, o toque de
recolher em Biloxi era irrelevante.
As ruas da cidadezinha do Mississippi estavam desertas. As casas,
escuras e vazias, cheias só com a
lama que tomou todos os cômodos quando a água baixou.
Numa das poucas casas da cidade do litoral do Estado em que havia gente, Christopher Lawrence
Jr., 77, reunia sua família ao redor
da mesa na última quarta-feira à
noite para dar instruções. "Se alguém ouvir qualquer barulho, me
chame. Tenho algo para dar a eles,
eu tenho meu Smith & Wesson",
dizia o militar reformado.
Lawrence foi um dos poucos
habitantes de sua região da cidade
que permaneceram em Biloxi durante o furacão. Ao lado do primo
e vizinho Jerry Wayne, 71, agüentou-se em cima de uma estante
quando a água subiu. "Não senti a
casa se movendo muito nem nada. Eu me sinto seguro aqui. Meu
avô construiu essa casa, é o lugar
mais seguro da cidade. Em cem
anos, nunca tinha nem entrado
água", conta Lawrence.
Na noite da quarta-feira, ele parecia quase lamentar a chegada da
família, que veio das duas costas
dos EUA para saber se ele estava
bem e ajudá-lo a salvar aquilo que
restou.
"Para falar a verdade, fiquei um
pouco bravo [com a vinda de todos], não tinha nada para eles fazerem, e também acabei sem nada para oferecer."
Uma das filhas, Laura Carr, 41,
viajou de avião de Los Angeles,
perto de onde mora, até Mobile,
de onde alugou um carro.
A outra filha, Kimberly, 43,
voou de Maryland, no outro extremo do país, com a mãe, Catherine, 70. O caçula, Christopher 3º,
dirigiu 17 horas, também de
Maryland, para tentar chegar antes e prestar auxílio ao pai.
Em busca de corpos
Na manhã de quarta-feira, quase 48 horas depois da passagem
do furacão, funcionários da prefeitura de Biloxi passaram de casa
em casa na rua, chamando para
saber se havia alguém, arrombando portas para tentar encontrar
corpos.
"Eu disse a eles que todo mundo
tinha ido embora. As pessoas ainda têm medo do Camille [furacão
que passou pela região em 1969 e
deixou quase 150 mortos]. Mas
esse foi mais fraquinho", afirmou
Lawrence pai.
O fato é que, apesar da valentia
no discurso, restavam poucas forças. "Quando cheguei aqui, ele estava quente, muito abatido, achei
que fosse morrer", diz o filho, o
primeiro a chegar, ao meio-dia e
meia de quarta-feira. Desde segunda-feira, Lawrence e Wayne
limpavam incessantemente a casa, sem descansar e comer.
À noite, com a família reunida,
o medo era outro. Passou da limpeza à segurança. O grosso da lama já havia sido retirado, mas o
temor agora vinha de fora. O gerador que mantinha a geladeira
funcionando foi acorrentado a
duas vigas que permaneciam de
pé. O estoque de gasolina foi levado para dentro de casa. O Smith
& Wesson (revólver) ficou com o
pai. Um rifle de caça, com o filho.
Depois que todos foram deitar,
quase à meia-noite, a movimentação continuava. Alguém sempre
se levanta ao menor barulho.
Nunca há ninguém. Muitas vezes
são apenas cachorros, à procura
do dono ou de comida. Em outras, não se vê nada.
Barulho
Às 2h15, quando um som que
parecia de alguém no jardim surgiu, Lawrence, 77, levantou correndo e saiu, de lanterna e revólver na mão. "Quem está aí?", gritou. Não houve resposta. A partir
dessa hora, as velas foram todas
acesas, para mostrar que a casa tinha gente acordada. Lawrence ficou na varanda da frente. O caçula na varanda de trás.
Mas o resto da noite transcorreu
tranqüilo. Na manhã de quinta-feira, três dias depois do furacão,
os primeiros moradores começaram a chegar para ver o que havia
sobrado. "Não restou nada", falou um casal, com o rosto coberto
para evitar o mau cheiro dentro
de casa. Os dois não quiseram dar
o nome. "Essa tragédia é nossa, de
mais ninguém", disseram.
O pórtico que cobria a varanda
na frente tinha caído e bloqueava
a entrada. Pela porta de trás, entrava-se na sala. Dentro da casa,
móveis estavam amontoados,
cheios de lama, imprestáveis.
Na casa em frente à de Lawrence, um casal de negros brincava
com a situação. "Minha mãe veio
aqui ontem e levou a TV e o DVD,
que se salvaram porque estavam
no alto. Mas o que ela mais tinha
medo é que a polícia achasse que
ela também era uma saqueadora", fala, gargalhando, Sylvia, sobre sua mãe, de 68 anos.
As histórias de vizinhos, de gente sozinha tentando salvar o que
tem, levam a família de Lawrence
a exaltar sua própria união. "Minha filha Laura mora em uma casa de US$ 4 milhões na Califórnia,
perto de um campo de golfe. Ela é
do "jet-set". Mas quando o pai precisa dela, onde ela está? De joelhos, aqui, esfregando o chão",
conta Catherine.
"Nossa família é muito unida.
Meu pai e minha mãe são casados
há mais de 50 anos. Os quatro filhos [uma, Amy, teve de ficar trabalhando] também são, não tem
uma separação. Nove netos. Essa
é a nossa educação", fala a filha
mais velha, Kimberly.
Desaparecidos
Mas nem só as famílias se unem
nessas horas. Apesar dos relatos e
mais relatos de saques e de brigas,
vizinhos também tentam se ajudar em meio à catástrofe.
Quando a mãe dava entrevista
para a Folha na varanda, um vizinho se aproxima. Pergunta se alguém quer gelo, ou cobertores. O
gelo, conseguiu numa fila de distribuição, mas não vai usar tudo.
O cobertor foi uma das poucas
coisas que não se molharam em
sua casa e não vai ser usado, porque ele decidiu partir para a casa
de familiares na Califórnia.
Numa cidade sem telefone, fixo
ou celular, o boca-a-boca tem outra grande utilidade. A busca pelos desaparecidos. A filha de Jerry
Wayne, Jeree, 23, quer saber onde
está a mãe. Chorando ao lado do
filho, Danny Jr., 5, pergunta a todos nas ruas de Biloxi se sabem se
ela conseguiu partir ou não. Ninguém tem notícias.
Na TV, a toda hora as redes
americanas transmitem mensagens de parentes, de gente que se
encontrou pelo rádio, pela internet, por imagens que são veiculadas pelos canais.
Por que ficar?
Mas com um histórico de tanta
tragédia, muita gente se pergunta
por que as pessoas insistem em
viver na região, tanto em relação
aos que ficam para resistir ao furacão quanto aos que se abrigam
em outros Estados. Segundo moradores de Biloxi, Gulfport e D'Iberville, a resposta é uma só: passado. É gente cuja família está na
região há gerações, que não quer
deixar para trás sua história.
"Eu nunca saio. Meu avô passou
essa casa para o meu pai, que passou para mim. Eu vou passar para
o meu filho, que vai passar para o
filho dele", justifica Christopher
Lawrence.
Texto Anterior: De Fidel a Putin, ofertas de ajuda se multiplicam Próximo Texto: Tragédia nos EUA: Na dúvida, mundo se informa por blogs Índice
|