São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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ARTIGOS

Sentenciados a mais quatro anos

QUENTIN PEEL
DO "FINANCIAL TIMES"

A vitória de George W. Bush sobre John Kerry não é o resultado que o mundo desejava. O desafiante democrata era o mais popular dos candidatos à Presidência americana em quase todos os países, excetuados os EUA. Mas os estrangeiros não votam. Para a maioria dos eleitores americanos, o atual presidente é o homem que os fez voltar a sentir segurança em um mundo ameaçado pelo terrorismo mundial, depois dos ataques de 11 de setembro de 2001.
Com algumas exceções óbvias, especialmente Israel e Rússia, a maior parte dos demais países acredita no oposto: que com Bush na Presidência, o mundo é um lugar mais perigoso. Na Europa e na Ásia, na África e na América Latina, a crença é de que a guerra liderada pelos EUA no Iraque desestabilizou ainda mais o já volátil Oriente Médio. Eles vêem suas economias ameaçadas pela alta resultante nos preços da energia. Temem que as Nações Unidas, consideradas a mais confiável das instituições para a condução de missões de paz e a resolução de conflitos, tenha sido solapada pelo unilateralismo americano. Desconfiam da inclinação americana a ações militares preventivas.


Só após mais quatro anos de vacilações e erros cometidos, número suficiente compreenderá que nem mesmo a superpotência pode se manter surda aos aliados


A maioria dos eleitores americanos, aparentemente, não compartilha dessas opiniões, como demonstraram ao ir às urnas anteontem, se bem que o país continue profundamente dividido. Bush e sua equipe verão o resultado como confirmação de sua vigorosa conduta da chamada "guerra contra o terrorismo", à qual acrescentaram à invasão do Iraque. A confiança absoluta do presidente em si mesmo e sua dedicação à luta do "bem" contra o "mal" motivaram um sólido eleitorado de conservadores e de religiosos evangélicos a apoiá-lo.
A vitória de Bush representa um grande dilema para o mundo externo, incluindo muitos dos mais tradicionais aliados dos EUA. O unilateralismo ideológico do governo Bush causou cisões na Europa e agravou as divisões transatlânticas. Não se trata só da mal ponderada invasão do Iraque, mas também da convicção subjacente de que "coalizões de interessados" devem ter preferência, antes da Otan. Bush e seus assessores neoconservadores estão determinados a reestruturar a ordem internacional que manteve a paz, com sucesso maior ou menor, desde a Segunda Guerra Mundial.
Muitos dos países europeus contribuíram para as "forças da coalizão" no Iraque porque consideraram que era preciso manter a proximidade com a superpotência custasse o que custasse, e não por convicção de que suas políticas estão corretas. Outros países amistosos, como a Turquia e a Índia, ficaram atônitos com a invasão. "É muito triste. Eles desejavam uma coalizão internacional contra o Iraque e terminaram criando, virtualmente, uma aliança internacional contra os Estados Unidos", disse Jaswant Singh, ex-chanceler indiano. "Espero que eles tenham aprendido uma lição, extremamente dispendiosa, mas muito necessária."
Não havia sinais disso na campanha de Bush. Mas o perigo de que a situação do Iraque descambe para o caos vai aumentar muito a pressão para que os dissidentes, como a França e a Alemanha, se envolvam. Ambos os países rejeitaram repetidas vezes a idéia de enviar tropas ao Iraque, mas nenhum dos dois deseja ver o surgimento de um Estado fracassado na região. Não importa o que Washington possa estar pensando, nem Paris nem Berlim gostariam de ver os EUA humilhados. É preciso trabalhar por um novo modus vivendi.
O Irã é um segundo ponto sério de potencial fricção entre Bush e seus aliados. A União Européia (incluindo membros da coalizão que participam da ocupação do Iraque), Rússia e Índia acreditam que uma política de ameaças e estímulos seja necessária para persuadir Teerã a abandonar suas ambições nucleares. Reconhecem que o país tem preocupações genuínas de segurança numa região na qual tanto Israel quanto o Paquistão já dispõem de armas nucleares, enquanto os vizinhos Iraque e Afeganistão demonstram enorme instabilidade. Eles temem que um poderoso lobby da linha dura em Washington possa persuadir o presidente reeleito a lançar ataques de mísseis contra as supostas instalações nucleares do Irã, pondo fim a quaisquer esperanças de reconciliação pacífica.
Há esperança, especialmente em Londres, de que o segundo mandato de Bush seja mais atento às preocupações internacionais, da mesma forma que o segundo mandato de Reagan gerou uma política externa mais sensível. Mas o oposto pode ser verdade. O sucesso eleitoral de Bush foi conquistado com base numa plataforma política completamente belicosa. Colin Powell, o mais moderado de seus assessores, deve deixar o cargo de secretário de Estado no final do ano. É improvável que quem venha a sucedê-lo se mostre tão sensível quanto ele às preocupações internacionais.
A visão mais positiva é de que duas percepções possam enfim chegar à Casa Branca. Uma é que dividir os EUA em ferozes linhas partidárias pode ajudar na reeleição, mas não ajudará em termos históricos. A outra é que o Iraque jamais será estabilizado sem uma coalizão mais ampla, para dar a qualquer futuro regime a legitimidade que as forças americanas são claramente incapazes de prover.
Bush, triunfante, pode não estar inclinado a ouvir essas mensagens. Mas existe outra opinião que começa a ganhar credibilidade em meio à comunidade internacional, cada vez menos esperançosa: a de que só depois de mais quatro anos de vacilações e erros cometidos por um governo ideologicamente motivado, número suficiente de pessoas compreenderá que nem mesmo a única superpotência que resta no mundo pode se manter permanentemente surda a seus aliados. Só então a lição será aprendida.


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