São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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Mobilização contra gays ajuda reeleição


Em área de maioria republicana, questões morais foram decisivas

Eleitores chamados a opinar sobre casamento gay rechaçaram idéia



CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MIAMI

Em 11 dos 50 Estados americanos, o eleitorado foi chamado, anteontem, a se manifestar também sobre o casamento gay. Em todos, houve forte maioria contra, exceto no Oregon, em que o casamento gay foi igualmente rechaçado, mas com menor margem.
Esse resultado é, talvez, a melhor explicação para o outro e mais importante placar, qual seja a vitória do presidente George W. Bush: o item que isoladamente mais chamou o eleitor às urnas foi a "questão moral". Há, claro, o Iraque/guerra ao terrorismo, mas ele vem embrulhado no pacote moral, como depõe Luis Lugo, diretor do Fórum Pew sobre Religião e Vida Pública, centro de pesquisas especializado no tema:
"Um bom número de questões morais se tornou um grande assunto na campanha, notadamente o casamento gay e a pesquisas sobre células-tronco, mas também a Guerra no Iraque, que muitos eleitores vêem como um tema moral, levando tanto Bush como Kerry a despender mais tempo falando sobre religião e ética".
Por que o Iraque entra, para certos eleitores, no pacote dos valores morais? Responde outro pesquisador, John Zogby: "A grande maioria dos eleitores em Estados republicanos nos diz que identificam Deus como um Deus que representa o bem triunfando sobre o mal". Bingo. É Bush punindo Saddam Hussein no Iraque.
As pesquisas boca-de-urna confirmam: 36% dos eleitores, a maioria relativa dos eleitores ouvidos na terça-feira pela rede de TV ABC, disseram que seu voto fora decidido por "valores morais", um território em que Bush trafega com mais desenvoltura.
Ou, como prefere Nicholas D. Kristof, um dos melhores analistas norte-americanos, em seu artigo de ontem para "The New York Times", os republicanos vendem melhor sua posição sobre os quatro Gs: God (Deus), guns (armas), gays e "grizzlies" (jargão para certas idéias ambientalistas).
O fato de venderem melhor explica porque ganharam, mas não quer dizer que os EUA tenham se tornado ainda mais conservadores do que quase sempre foram. O país está rachado praticamente ao meio: 51% votaram pelo conservador Bush, mas 49% preferiram Kerry (liberal, portanto de esquerda no contexto dos EUA) ou Ralph Nader, ainda mais liberal.
Mas, atenção, a divisão passa centralmente pelas questões morais, portanto, de consumo interno, muito mais do que pelo papel dos Estados Unidos no mundo.
Basta saber que pesquisa do Council on Foreign Relations, seção de Chicago, mostra que 83% dos americanos aprovam ataques aéreos contra campos de treinamento e outras instalações de terroristas; 76% aprovam o uso de tropas terrestres com idêntica finalidade; e 68% o assassinato seletivo de líderes terroristas.
Posto de outra forma: maciças maiorias apóiam as políticas que Bush adotou após os atentados de 11 de setembro. O que é fácil de explicar: pesquisa boca-de-urna da agência de notícias Associated Press mostra que 3/4 dos eleitores se dizem preocupados com a hipótese de novo ataque terrorista.
Logo, apoiar tudo o que pareça fazer sentido contra o terrorismo é um instinto. A divergência começa com a aplicação prática dos princípios que orientam a guerra contra o terror na gestão Bush: mais ou menos a metade acha que a guerra vai mal (e votou Kerry). A outra metade votou Bush.
Em outros tipos de clivagem na sociedade americana, não houve maiores surpresas ou alterações em relação ao padrão usual ou ao que predominou em 2000.
Os hispânicos, por exemplo, votaram majoritariamente por Kerry, como é usual, mas a diferença sobre Bush caiu pela metade, para 15 pontos percentuais.
Já os negros desprezaram Bush mais do que qualquer outro republicano desde Barry Goldwater, em 64, candidato explicitamente racista: 10% votaram pelo presidente (Goldwater teve 6%).
Os jovens (18 a 24 anos), ao contrário do que queriam os democratas, não votaram maciçamente. Formaram os mesmos 10% do eleitorado que em 2000.

Reação
É óbvio que a divisão entre os americanos não se desfaz com a eleição. Mas é possível que se esteja assistindo ao pico do conservadorismo em questões morais, o que, se verdadeiro, levará a um refluxo inevitável mais adiante.
Ocorre que esta eleição marcou uma mobilização dos evangélicos provavelmente inédita, justamente porque estavam em jogo questões morais, em especial os plebiscitos sobre casamento gay. É uma reversão do cenário dos anos 60, quando o Gallup verificou que 53% dos americanos achavam que igrejas não deveriam envolver-se em política. Depois, veio a revolução liberal nos costumes, cujo ponto alto foi 1968, e começou a reação conservadora.
É possível que, agora, venha a contra-reação, porque certas igrejas avalizam não apenas o veto ao casamento gay ou às pesquisas com células-tronco, mas também a guerra. Exemplo de reação: 200 líderes cristãos divulgaram manifesto em que condenam o que chamam de "teologia da guerra" e afirmam que "os papéis de Deus, da Igreja e da nação estão sendo confundidos pelo discurso de uma "missão" americana e de uma "designação divina" da América para "livrar o mundo do mal".
A questão religiosa é relevante em um país em que 141 milhões de pessoas -mais do que o número de eleitores que votaram- são membros de alguma igreja. Mas o especialista Luis Lugo deixa claro, que, embora "a religião tenha desempenhado um papel na vida pública americana, ela não domina a cena política, pois o país tem tantas denominações que nenhuma igreja pode realmente dominar a própria cena religiosa".
A cena política é também ocupada, crescentemente, por entidades da sociedade civil, igualmente multifacetadas. O que ajuda a explicar a vitória dos republicanos é o fato de que, também nessa área civil, o conservadorismo está penetrando com sua agenda radical.
Exemplo: o grupo "Focus on the Family" convocou boicote de produtos da Procter & Gamble, porque a multinacional ajuda no combate à discriminação contra homossexuais. Para James Dobson, seu líder, trata-se de "apoio tácito" ao casamento gay.
Alguma surpresa com o fato de que Dobson e seu grupo tenham mobilizado eleitores contra o casamento gay e, de quebra, para votar em George Walker Bush?


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