São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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Eleição consolida divisão profunda, dizem analistas

MARIA BRANT
FREE-LANCE PARA A FOLHA

A manhã de ontem, não surpreendentemente, foi de luto para os eleitores de John Kerry. Mas, conforme a vitória de George W. Bush se consolidava, o sentimento predominante em revistas e blogs simpatizantes do Partido Democrata não era tanto o de tristeza quanto o de raiva.
Entre os autores de blogs populares, alguns ameaçavam emigrar para o Canadá -como Tom, do "Chicago Files"-, outros davam razão a europeus que vêem os americanos como "um bando de ignorantes estúpidos"-como Xeni Jardin, do BoingBoing.
A reação parecia confirmar a previsão circulada em e-mails e reproduzida em blogs à exaustão na semana passada, de que, quem quer que ganhasse a eleição, ganharia de quebra uma metade "extremamente irritada" do país.
A frustração parecia ser maior do que em 2000, quando Bush ganhou de Al Gore por uma decisão da Suprema Corte, exatamente porque, nesta eleição, a legitimidade do presidente republicano é inquestionável. Com uma diferença de 4 milhões de votos e a maioria na Câmara e no Senado, além da vitória conservadora nos plebiscitos estaduais, é inegável que a maioria dos americanos prefere Bush a Kerry.
Segundo analistas ouvidos pela Folha, a divisão do país é profunda, e veio para ficar. Para alguns, ela é mais personalista e ideológica do que propriamente política, e tende a se aprofundar ainda mais, tanto da parte dos republicanos quanto da dos democratas.
Por um lado, republicanos devem acentuar a divisão simplesmente porque não precisam do apoio democrata. David Plotke, chefe do Departamento de Ciência Política da New School University (Nova York), diz que "Bush vai considerar que está autorizado a pôr em prática suas principais políticas sem ter de fazer compromissos".
Para o cientista político Alexander Keyssar, da Universidade Harvard (Cambridge), há uma divisão "extremamente aguda" no eleitorado americano, e ela não desaparecerá rapidamente. "A questão não é a de se os democratas vão querer trabalhar com Bush, mas se os republicanos estão preparados para fazer concessões aos democratas, o que não fizeram no primeiro mandato."
Por outro lado, segundo os analistas, os democratas terão de refletir sobre sua identidade se quiserem ampliar sua base. "A divisão agora é muito intensa, cheia de animosidade. Se ela provém de diferenças reais quanto a certas questões ou [se centra na figura de Bush], está menos claro", afirmou Potke. "Na campanha, Kerry atacou Bush como um incompetente, sem enfatizar a profundidade de sua discordância com ele."
Para Keyssar, o Partido Democrata terá de se mover ainda mais para o centro, competindo com os republicanos, ou para a esquerda, marcando oposição clara.
Segundo Stephen Wayne, especialista em política da Universidade Georgetown (Washington), o dilema põe democratas em uma "sinuca de bico".
"Eles não podem se mover demasiado à direita para ampliar sua base, mas por outro lado não podem abraçar o liberalismo em um país que se torna cada vez mais conservador", afirmou. "A boa notícia para os democratas é que eles não perderam por muito, ganharam o apoio de eleitores jovens, que votaram pela primeira vez, e elegeram novos quadros."
Vozes na esquerda do Partido Democrata, frustradas com a gradual aproximação do partido ao centro também acharam pontos positivos, ou um prêmio de consolação, nos resultados de ontem.
O colunista da "The Nation" David Corn, autor do best-seller "The Lies of George W. Bush" (Crown, 2003), disse em artigo que a boa notícia da eleição era precisamente a de que mostrou que os EUA são um país dividido.
"Quase -quase- metade do eleitorado rejeitou a liderança de Bush, sua pauta, suas prioridades, suas falsidades", afirmou. "Quase metade desejava uma liderança melhor e mais honesta."
Corn vê outra esperança na eleição de Bush, curiosamente repetida em diversos blogs de simpatizantes democratas: o fato de que segundos mandatos presidenciais sempre estiveram marcados por escândalos nos EUA. Nixon teve Watergate, Reagan, os Irã-Contras, e Clinton, Monica Lewinsky. O analista crê que o Iraque deva ser o foco do escândalo de Bush.
Resta saber se, até lá, os democratas já terão achado nova identidade -incluindo quanto a seu apoio à invasão do Iraque- e tornado isso claro para os eleitores.


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