São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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Analista prevê reforço de laços com China


A China será o centro industrial do mundo e os EUA, a força político-militar

Os EUA não conseguirão manter uma enorme força militar no Iraque



DA REDAÇÃO

Há uma espécie de aliança geopolítica tácita entre a China e os EUA na cena internacional atualmente. Assim, ao longo do século 21, a China se transformará no grande centro comercial e industrial do planeta, enquanto os EUA serão a potência político-militar. E o presidente George W. Bush deverá aprofundar a tendência.
A análise é de Charles Tilly, historiador, especialista em relações internacionais da Universidade Columbia (Nova York) e autor de, entre diversos outros, "From Contention to Democracy" (da contenção à democracia).
(MÁRCIO SENNE DE MORAES)
 

Folha - Quais serão as conseqüências globais da vitória de Bush?
Charles Tilly -
Ele verá seu triunfo eleitoral como uma aprovação popular de sua política externa. Infelizmente, isso significa que as prioridades e o estilo dessa política não deverão ser alterados. Essa tendência fará que os aliados tradicionais dos EUA, sobretudo os europeus, se afastem ainda mais do governo americano, minando sobremaneira sua força global.
Mais quatro anos de Bush na Presidência poderão levar a uma crise financeira nos EUA, pois as despesas militares elevadas e os cortes de impostos produzem déficits enormes. Com isso, o dólar poderá entrar em colapso.
Os EUA têm um extraordinário déficit em suas contas externas, que vem sendo financiado pela compra de títulos do Tesouro americano por parte de potências asiáticas, sobretudo a China e o Japão. Mas o voto de confiança na economia dos EUA deverá declinar, o que poderá gerar uma crise financeira internacional. E a polarização entre muçulmanos e não-muçulmanos tende a agravar-se em razão das políticas de Bush.

Folha - Haverá novos ataques preventivos nos próximos anos?
Tilly -
Tudo depende do que ocorrerá no Afeganistão e no Iraque. Afinal, os EUA não têm força militar nem financeira para dar início a uma nova guerra atualmente. Mesmo os "estrategistas" do Pentágono reconhecem que não é possível começar um novo conflito sem ao menos conter o agravamento dos dois primeiros.
Por ora, um ataque do gênero está além das capacidades militar e financeira dos EUA. Isso sem falar na opinião pública americana, sem a qual uma ofensiva seria fadada ao fracasso político. Ela não aceitaria novas ações militares.

Folha - O sr. vê solução para a crise iraquiana no futuro próximo?
Tilly -
Não. Duas perguntas são importantes aqui. Primeiro, há saída para a crise iraquiana? Segundo, qual será a estratégia aplicada pelo governo dos EUA? Bush e seus assessores buscarão achar um modo de fingir que estão transferindo a autoridade política a um governo iraquiano, mantendo um número pequeno de soldados no país e na região para ter a situação "sob controle".
Isso será feito o mais rápido possível porque os EUA não têm os recursos necessários para manter uma enorme força militar no país, que vem-se tornando um incomodo cada vez maior. Se essa estratégia funcionará, não sabemos. Afinal, há boas chances de que haja a eclosão de uma guerra civil quando as forças americanas e internacionais deixarem o país.
Por outro lado, existe uma solução razoável para a crise. Contudo ela passa pela criação de uma coalizão, sob a égide da ONU, formada sobretudo por Estados muçulmanos, que assumiriam parte da responsabilidade pela pacificação e pela estabilização do Iraque. Isso seria um passo crucial para permitir alguma forma de colaboração entre Estados muçulmanos e não-muçulmanos. Porém não creio que Bush e seus assessores queiram seguir esse caminho.

Folha - Como evoluirão as relações transatlânticas no futuro?
Tilly -
Elas se tornarão piores do que foram nos últimos dois anos. A divisão entre os amigos dos EUA e seus inimigos será exacerbada. A possibilidade de cooperação entre os EUA e as potências européias em áreas como o controle da proliferação de armas de destruição em massa declinará.
Os principais Estados europeus e latino-americanos vão reduzir seu escopo de colaboração com um governo unilateralista americano. A política externa de Bush continuará a minar o "soft power" [a força internacional de um país que advém de sua influência cultural e ideológica] dos EUA.

Folha - Isso tornará uma solução para a crise israelo-palestina mais difícil, não é?
Tilly -
Sem dúvida. Sem uma harmonização das posições americana e européia, um acordo de paz no Oriente Médio fica mais distante. Com Bush no poder, as iniciativas de Ariel Sharon [premiê de Israel] passam a ser muito importantes. É possível que a retirada das tropas israelenses da faixa de Gaza sirvam para acalmar a situação, mas isso ainda é incerto.

Folha - E quanto ao Afeganistão?
Tilly -
Em vários aspectos, a crise afegã é mais grave que a iraquiana. O Afeganistão tornou-se de novo o maior produtor mundial de heroína, e há menos controle do poder central sobre o restante do país hoje do que no passado.
Assim, as redes criminosas que conectam o Afeganistão ao restante do planeta se tornaram mais fortes nos últimos anos, o que é muito grave, e os EUA não parecem dar o devido valor à situação.
Quanto maior for a influência dos senhores da guerra e dos traficantes na sociedade afegã, maiores são as chances de outros criminosos buscarem negociar com os afegãos, já que há um clima de ilegalidade em todo o país.

Folha - A China ameaça os EUA?
Tilly -
Ela ajuda os EUA, pois financia seu déficit. Acredito que nos dirijamos agora em direção a um mundo em que a China será o grande centro comercial e industrial e os EUA serão a potência político-militar. Há uma espécie de aliança tácita entre os dois países, e Bush deverá aprofundar a tendência, sobretudo por conta do déficit que suas políticas gerarão.
No século 21, haverá, portanto, dois centros de poder, pois há uma espécie de "divisão de poder" entre a China e os EUA. Estes perderão a primazia econômico-comercial, e a China ganhará força nesse campo. Essa aliança geopolítica está em vigor há algum tempo, o que é uma má notícia para o restante do planeta.


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