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A incrível história do "Xeque de Bagdá"
Adnan Alkaissy conta como passou de colega de Saddam Hussein a estrela dos ringues americanos e depois ajudou regime iraquiano
Levado aos EUA pela CIA na adolescência, iraquiano abraçou a luta profissional e ajudou, de volta a seu país, a consolidar o Baath no poder
MARCELO NINIO
DA REDAÇÃO
No extravagante mundo da
luta livre americana, pouca coisa é o que parece. Personagens
travam lutas arranjadas para
aficionados que deliram com o
espetáculo, mesmo sabendo
que é combinado. Quem poderia imaginar, no meio desse faz-de-conta, que por trás do "Xeque de Bagdá", um falso vilão
que fez sucesso nos anos 80, estava um iraquiano que não apenas é xeque na vida real como
foi um dos personagens mais
inusitados na ascensão e queda
de Saddam Hussein?
A incrível trajetória de Adnan Alkaissy, só revelada agora,
com o lançamento de sua autobiografia nos EUA, começa na
Bagdá dos anos 50, quando ele
foi colega de escola de Saddam.
Passa pelos EUA, onde virou
estrela do "wrestling", e volta
ao Iraque, para um novo encontro com o amigo de infância, a quem prestaria um serviço incomum para a consolidação do partido Baath no poder.
Alkaissy diz que manteve sua
história em segredo por medo.
Ainda tem parentes no país, inclusive cinco irmãos, e não queria expô-los aos ímpetos de vingança de Saddam. Mas, com o
ditador sendo julgado, o veterano lutador decidiu que era hora
de romper seu silêncio.
Antes de fazer sucesso como
xeque nos ringues americanos,
nos quais costumava entrar erguendo uma espada e cercado
de dançarinas do ventre, Alkaissy conheceu Saddam. Cursaram juntos o fim do ensino
fundamental, época em que
costumavam jogar xadrez e discutir política nos enfumaçados
cafés de Bagdá. "Éramos muito
amigos. Ele era estudioso, lia o
que lhe caía nas mãos, e muito
ambicioso", recorda Alkaissy,
em conversa com a Folha por
telefone de sua casa, no estado
americano de Minnesotta.
"Para ser honesto, não pensei que ele viveria tanto. Saddam era selvagem. Não conseguia ficar parado", conta.
"Quando tinha 16 anos ele soube que um comunista havia sido eleito prefeito em Tikrit, sua
cidade natal. Entrou escondido
na Prefeitura e o matou com
dois tiros." Pagou pouco pelo
crime. Seis meses depois, um
tio abastado o tirou da cadeia.
Sucesso nos EUA
Atleta bem-sucedido na escola, Alkaissy foi cooptado por
um agente da CIA, serviço secreto americano. Recebeu uma
bolsa de estudos para jogar futebol americano e partiu rumo
à Universidade de Houston. Na
época, em plena Guerra Fria,
espiões americanos faziam esse
serviço para impedir que os jovens seguissem para o outro lado Cortina de Ferro, estudar na
Rússia ou na China.
Empurrada pelo esporte, a
carreira acadêmica deslanchou. A essa altura já tinha trocado o futebol pela luta. Daí para o "Pro Wrestling", a luta livre
profissional, foi um pulo. Pele
morena, começou lutando como o personagem indígena
"Chief Billy White Wolf". Em
1969, estabelecido como lutador, decidiu voltar à cidade natal para uma breve visita.
O amigo, que se tornara um
alto oficial do Baath, pediu a Alkaissy que ficasse e ajudasse a
fazer da luta livre um esporte
popular no Iraque. "Nosso povo precisa de um bom herói",
teria dito Saddam. Ao explicar
que estava de passagem, ouviu
que ele devia aquilo à pátria.
Ficou nove anos no Iraque.
As lutas, organizadas pelo partido, reuniam até 200 mil pessoas. Virou ídolo nacional. Ganhou um alto cargo no governo,
tinha carros de luxo e morava
numa mansão. "Trabalhava para Saddam", admite. "Hoje sei
que ele só queria desviar a atenção dos assassinatos e torturas
praticadas pelo regime."
Saddam subiu na hierarquia
do partido, mas Alkaissy começou perder o brilho. "No começo eu chegava até Saddam
quando bem entendia, conseguia o que queria", lembra. "De
repente as coisas mudaram.
Um sobrinho meu, que trabalhava no palácio, começou a ouvir rumores de que iam se livrar
de mim". O motivo? "Inveja. Eu
era popular demais."
Deixou para trás a mansão,
os carrões e uma fortuna no
banco, arrumou uma mala com
US$ 50 mil e viajou para o Kuwait. De lá, voou para os EUA,
onde seguiu a carreira de lutador até que uma contusão no
joelho o obrigou a parar.
Alkaissy ainda ensaiou um
cômico retorno aos ringues na
primeira Guerra do Golfo, em
1991. Na pele de um personagem inspirado em Saddam,
"General Adnan", levava a platéia à loucura. "Acho que cheguei a correr risco. Um maluco
podia achar que aquilo era para
valer e me dar um tiro", diz.
Hoje Alkaissy se divide entre
apresentações em bares e cassinos de Minnesotta como o "Xeque de Bagdá" e palestras sobre
o Iraque. Para ele, a invasão foi
acertada. "Saddam jamais deixaria o poder. Ele ficaria mais
algumas décadas e depois poria
o filho em seu lugar", diz Alkaissy, que, no entanto, critica
os EUA pela condução do pós-guerra. "Deram poder aos xiitas, e eles o usaram para perseguir e matar sunitas."
Seu sonho é voltar a Bagdá
para uma luta de despedida.
"Gostaria de me apresentar para 200 mil pessoas", afirma ele,
que diz ter herdado o título do
pai, um influente líder espiritual sunita. Ao voltar, pretende
ir à cadeia onde está o ex-colega
para tentar esclarecer algo que
nunca entendeu. "Quero olhar
para ele e perguntar: você tinha
tudo, dinheiro, influência e poder. Por que jogou tudo fora para desafiar o mundo?"
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