São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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A incrível história do "Xeque de Bagdá"

Adnan Alkaissy conta como passou de colega de Saddam Hussein a estrela dos ringues americanos e depois ajudou regime iraquiano

Levado aos EUA pela CIA na adolescência, iraquiano abraçou a luta profissional e ajudou, de volta a seu país, a consolidar o Baath no poder

MARCELO NINIO
DA REDAÇÃO

No extravagante mundo da luta livre americana, pouca coisa é o que parece. Personagens travam lutas arranjadas para aficionados que deliram com o espetáculo, mesmo sabendo que é combinado. Quem poderia imaginar, no meio desse faz-de-conta, que por trás do "Xeque de Bagdá", um falso vilão que fez sucesso nos anos 80, estava um iraquiano que não apenas é xeque na vida real como foi um dos personagens mais inusitados na ascensão e queda de Saddam Hussein?
A incrível trajetória de Adnan Alkaissy, só revelada agora, com o lançamento de sua autobiografia nos EUA, começa na Bagdá dos anos 50, quando ele foi colega de escola de Saddam. Passa pelos EUA, onde virou estrela do "wrestling", e volta ao Iraque, para um novo encontro com o amigo de infância, a quem prestaria um serviço incomum para a consolidação do partido Baath no poder.
Alkaissy diz que manteve sua história em segredo por medo. Ainda tem parentes no país, inclusive cinco irmãos, e não queria expô-los aos ímpetos de vingança de Saddam. Mas, com o ditador sendo julgado, o veterano lutador decidiu que era hora de romper seu silêncio.
Antes de fazer sucesso como xeque nos ringues americanos, nos quais costumava entrar erguendo uma espada e cercado de dançarinas do ventre, Alkaissy conheceu Saddam. Cursaram juntos o fim do ensino fundamental, época em que costumavam jogar xadrez e discutir política nos enfumaçados cafés de Bagdá. "Éramos muito amigos. Ele era estudioso, lia o que lhe caía nas mãos, e muito ambicioso", recorda Alkaissy, em conversa com a Folha por telefone de sua casa, no estado americano de Minnesotta.
"Para ser honesto, não pensei que ele viveria tanto. Saddam era selvagem. Não conseguia ficar parado", conta. "Quando tinha 16 anos ele soube que um comunista havia sido eleito prefeito em Tikrit, sua cidade natal. Entrou escondido na Prefeitura e o matou com dois tiros." Pagou pouco pelo crime. Seis meses depois, um tio abastado o tirou da cadeia.

Sucesso nos EUA
Atleta bem-sucedido na escola, Alkaissy foi cooptado por um agente da CIA, serviço secreto americano. Recebeu uma bolsa de estudos para jogar futebol americano e partiu rumo à Universidade de Houston. Na época, em plena Guerra Fria, espiões americanos faziam esse serviço para impedir que os jovens seguissem para o outro lado Cortina de Ferro, estudar na Rússia ou na China.
Empurrada pelo esporte, a carreira acadêmica deslanchou. A essa altura já tinha trocado o futebol pela luta. Daí para o "Pro Wrestling", a luta livre profissional, foi um pulo. Pele morena, começou lutando como o personagem indígena "Chief Billy White Wolf". Em 1969, estabelecido como lutador, decidiu voltar à cidade natal para uma breve visita.
O amigo, que se tornara um alto oficial do Baath, pediu a Alkaissy que ficasse e ajudasse a fazer da luta livre um esporte popular no Iraque. "Nosso povo precisa de um bom herói", teria dito Saddam. Ao explicar que estava de passagem, ouviu que ele devia aquilo à pátria.
Ficou nove anos no Iraque. As lutas, organizadas pelo partido, reuniam até 200 mil pessoas. Virou ídolo nacional. Ganhou um alto cargo no governo, tinha carros de luxo e morava numa mansão. "Trabalhava para Saddam", admite. "Hoje sei que ele só queria desviar a atenção dos assassinatos e torturas praticadas pelo regime."
Saddam subiu na hierarquia do partido, mas Alkaissy começou perder o brilho. "No começo eu chegava até Saddam quando bem entendia, conseguia o que queria", lembra. "De repente as coisas mudaram. Um sobrinho meu, que trabalhava no palácio, começou a ouvir rumores de que iam se livrar de mim". O motivo? "Inveja. Eu era popular demais."
Deixou para trás a mansão, os carrões e uma fortuna no banco, arrumou uma mala com US$ 50 mil e viajou para o Kuwait. De lá, voou para os EUA, onde seguiu a carreira de lutador até que uma contusão no joelho o obrigou a parar.
Alkaissy ainda ensaiou um cômico retorno aos ringues na primeira Guerra do Golfo, em 1991. Na pele de um personagem inspirado em Saddam, "General Adnan", levava a platéia à loucura. "Acho que cheguei a correr risco. Um maluco podia achar que aquilo era para valer e me dar um tiro", diz.
Hoje Alkaissy se divide entre apresentações em bares e cassinos de Minnesotta como o "Xeque de Bagdá" e palestras sobre o Iraque. Para ele, a invasão foi acertada. "Saddam jamais deixaria o poder. Ele ficaria mais algumas décadas e depois poria o filho em seu lugar", diz Alkaissy, que, no entanto, critica os EUA pela condução do pós-guerra. "Deram poder aos xiitas, e eles o usaram para perseguir e matar sunitas."
Seu sonho é voltar a Bagdá para uma luta de despedida. "Gostaria de me apresentar para 200 mil pessoas", afirma ele, que diz ter herdado o título do pai, um influente líder espiritual sunita. Ao voltar, pretende ir à cadeia onde está o ex-colega para tentar esclarecer algo que nunca entendeu. "Quero olhar para ele e perguntar: você tinha tudo, dinheiro, influência e poder. Por que jogou tudo fora para desafiar o mundo?"


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