São Paulo, quarta-feira, 06 de abril de 2005

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A MORTE DO PAPA

O poder da Opus Dei

Organização conservadora chegou à cúpula do Vaticano com João Paulo 2º e ajudou a desativar a renovação do Concílio Vaticano 2º

JUAN JOSÉ TAMAYO-ACOSTA

A relação entre Karol Wojtyla e a Opus Dei começou nos anos 60, se consolidou na década seguinte e chegou ao auge nos anos 80-90, com a irresistível ascensão da Obra à cúpula do Vaticano, onde, depois de ocupar os mais influentes cargos de comando, interveio diretamente no traçado, primeiro, e em seguida na implementação do processo de restauração da Igreja Católica sob a direção do papa e a orientação teológica do cardeal alemão Ratzinger. Ao longo do último quarto de século, o catolicismo se configurou à imagem e à semelhança da organização de Escrivá de Balaguer.
A Opus começou a mimar Karol Wojtyla quando ele era arcebispo de Cracóvia. Como? Organizando para ele viagens por todo o mundo e convidando-o a participar de congressos da Obra em Roma e a fazer conferências no Centro Romano de Encontros Sacerdotais (Cris). Uma destas, dentro da mais pura tendência espiritualista da Opus Dei, tinha como título "A evangelização e o Homem Interior" e foi dada em 1974, o mesmo ano em que Paulo 6º publicava a encíclica "Evangelii nuntiandi", que ressaltava a relação entre a evangelização e a promoção humana. A sintonia se mostrou fácil desde o início, já que eles compartilhavam a mesma concepção da Igreja e da política: devoção mariana, conservadorismo teológico, confessionalidade das instituições temporais, rigor moral, autoritarismo eclesiástico etc.

Estratégia para a eleição
Como demonstraram os "Discípulos da Verdade" em sua documentada obra "A la Sombra del Papa Enfermo", a Opus desenhou com grande precisão a estratégia para a eleição papal de Wojtyla, com a colaboração decisiva do arcebispo de Munique, Joseph Ratzinger, dos cardeais americanos próximos da Obra J. Joseph Krol e J. Patrick Cody e do arcebispo de Viena, cardeal Franz König, na época entusiasta da Obra. O centro de operações foi a Villa Tevere, quartel-general da Opus Dei em Roma, onde Wojtyla rezou diante do túmulo do monsenhor Escrivá de Balaguer antes de entrar no conclave do qual sairia papa.
Durante seus quase 27 anos de pontificado, o papa pôs em prática a concepção de Igreja própria da Opus Dei, sem desviar-se do roteiro previsto, salvo na questão social: desativação da linha renovadora do Concílio Vaticano 2o, no qual ele próprio, como arcebispo de Cracóvia, tinha se alinhado com os setores mais conservadores; cruzada anticomunista lançada no pontificado de Paulo 6º; condenação da modernidade, na linha de Pio 9º e Pio 10º, por considerá-la inimiga do cristianismo; "restauração" da cristandade por meio da "nova evangelização". Tratava-se de um programa maximalista que a Obra tinha tentado desenvolver no Vaticano durante os pontificados de João 23 e Paulo 6º, mas sem sucesso, já que não gozava da simpatia de nenhum dos dois. Com João Paulo como papa ele podia ser levado adiante, já que, além da "boa química", havia convergência de objetivos, interesses e estratégias entre eles. A Opus era uma organização católica elitista implantada em todo o mundo, com uma estrutura hierárquica rígida, enorme poder econômico, disciplina férrea acompanhada de terminologia militar (""uma milícia armada da melhor maneira para a batalha espiritual, graças à mais severa disciplina"), forte componente proselitista e tendência ao doutrinamento. Por trás de sua aparente imagem laica se escondia, na realidade, uma organização clerical-eclesiástica.
Em seguida tiveram início as nomeações de eclesiásticos próximos da Opus para postos chaves do Vaticano. O espanhol Martínez Somalo, antes núncio na Colômbia, de tendência conservadora e tendo conexões diretas com a Opus, foi nomeado substituto da Secretaria de Estado, uma espécie de ministro da Presidência. O cardeal Pietro Palazzini, ligado à Obra, ocupou o cargo de prefeito da Congregação das Causas dos santos, o que acelerou o processo de beatificação de Escrivá, iniciado em maio de 1981, apenas seis anos após sua morte.
Um salto qualitativo na posição de destaque ocupada pela Opus Dei dentro do Vaticano foi a nomeação para diretor do serviço de imprensa da Santa Sé do médico espanhol Joaquín Navarro-Valls, membro numerário da Obra. O controle da Opus Dei sobre o poder mediático da Igreja garantia o sucesso do programa de reformas do papa polonês. Navarro-Valls foi durante quase 20 anos a única e mais autorizada voz do papa e chegou a vetar a participação de jornalistas determinados nas viagens. Isso aconteceu com Domenico del Rio, do diário romano "La Repubblica" -acusado pelo diretor de "L'Osservatore Romano" de "anticlericalismo silencioso, sórdido e antiquado"; em janeiro de 1985, ele foi excluído do vôo que levou João Paulo 2º à Venezuela, ao Peru e ao Equador.
O controle pleno do poder pela Opus se deu em 1990, com a nomeação de Angelo Sodano para secretário de Estado, uma espécie de chefe de governo do Vaticano, depois de ser aceita a renúncia do cardeal Casaroli, que pertencia à tendência "de abertura" dentro da Cúria. Sodano tinha entrado para o serviço diplomático da Santa Sé em 1961, foi núncio no Chile durante a ditadura de Pinochet e amigo pessoal do ditador.


João Paulo 2º pôs em prática a idéia de Igreja da Opus Dei, com "restauro" da cristandade e anticomunismo

Preparou cuidadosamente a viagem de João Paulo 2º ao Chile em 1987 -que se converteu num ato de legitimação religiosa do ditador- e intercedeu junto ao governo britânico para que libertasse o general Pinochet, detido em Londres devido ao pedido de extradição formulado pelo juiz espanhol Baltasar Garzón. Ainda me lembro da resposta do cardeal no aeroporto de Barajas [Madri], ao ser indagado sobre a secularização do teólogo brasileiro Leonardo Boff: "Não me surpreende. Também entre os 12 apóstolos houve um traidor". O franciscano Boff ser comparado com Judas!
A influência da Opus Dei se fez sentir de maneira especial na política de nomeações de bispos, arcebispos e cardeais. Os bispos progressistas nomeados por Paulo 6º ou na linha do Concílio Vaticano 2º foram substituídos por hierarcas da "restauração" do pontificado atual, que hoje constituem maioria na Igreja católica e ocupam as sedes episcopais mais importantes da cristandade, no Primeiro e no Terceiro Mundos.
Mas os dois fatos que melhor expressam a sintonia entre o papa e a Opus Dei foram a elevação deste à categoria de prelatura pessoal, o que o converteu, para todos os efeitos, em uma diocese supraterritorial, não submetida à jurisdição dos bispos locais, e a canonização de Escrivá de Balaguer. O primeiro foi um fato sem precedentes em toda a história do cristianismo. A "milícia opusdeísta" e seus dirigentes respondiam por seus atos apenas perante o papa e perante Deus. Nenhuma outra autoridade poderia pedir que lhes prestassem contas. A mudança de estatuto jurídico foi largamente contestada dentro da Igreja católica, não apenas entre os setores progressistas, mas também na própria Cúria e entre bispos de todo o mundo, inclusive os espanhóis, que foram os que reagiram mais fortemente. E não era para menos. A decisão "pessoal" do papa era vista como perigosa para a ordem hierárquica e para a unidade católica, já que trocava a obediência aos bispos pela submissão ao chefe da Obra. Temia-se, além disso, que, subtraída a obediência aos bispos locais, a Obra se convertesse em seita. E o temor não demorou a se realizar. Desde então, a Opus Dei se tornou e opera como "uma Igreja dentro da Igreja". Mais ainda com Escrivá de Balaguer, o "Pai" e fundador, elevado aos altares e convertido em exemplo a ser imitado!
A canonização foi levada a cabo apesar da oposição de amplos setores católicos, incluindo cardeais, arcebispos e bispos, e num tempo recorde de 27 anos, enquanto outras personalidades reconhecidas como santas pelo povo cristão, como João 23 e monsenhor Romero, eram relegadas.
Enquanto o Vaticano enchia a Opus Dei de favores e privilégios, João Paulo 2º levava a cabo ações repressivas contra organizações e tendências renovadoras. Duas das mais divulgadas foram o "expurgo da Companhia de Jesus" e a "campanha" contra a teologia da libertação, que Tad Szulc, biógrafo de João Paulo 2º, relaciona estreitamente entre si. A última foi personificada na admoestação pública feita a Ernesto Cardenal, ministro da Cultura do governo sandinista, e nas duas condenações contra o teólogo brasileiro Leonardo Boff.
O questionamento do papa contra a teologia da libertação começou em 1979, na 2ª Conferência do Episcopado Latino-americano, e foi intensificado pelo monsenhor Alfonso López Trujillo, secretário-geral, primeiro, e depois presidente da dita Conferência e próximo da Opus Dei, com influência crescente na Cúria romana, onde hoje ocupa o cargo de presidente da Congregação para a Família. Na campanha antiliberal a Opus Dei desempenhou um papel nada desprezível, por meio de influentes teólogos e bispos latino-americanos simpatizantes ou numerários, que, em suas respectivas dioceses, marginalizaram e até perseguiram leigos, sacerdotes, religiosos, religiosas, comunidades de base, lideranças socialmente comprometidas com a luta contra a injustiça. Entre os mais féis ao fundador e mais críticos contra a teologia da libertação é preciso citar o cardeal Cipriani, arcebispo de Lima, e o monsenhor Saénz Lacalle, arcebispo de San Salvador.

Cerco aos jesuítas
O expurgo da Companhia de Jesus parece ter um vínculo direto ou indireto com a irresistível ascensão da Opus Dei no Vaticano. Quanto mais degraus este subia na cúpula romana, mas se estreitava o cerco em torno dos jesuítas, que, a partir de sua Congregação Geral 32, deu uma reviravolta copernicana em suas prioridades evangelizadoras: compromisso com a justiça, diálogo com a secularização, evangelização libertadora e aculturação da fé.
O papa proibiu o padre Arrupe, superior geral da Companhia de Jesus, de convocar a Congregação Geral de 1981, onde ele pensava em apresentar sua renúncia: "Não quero que convoque esta Congregação e renuncie, pelo bem da Igreja e o bem de sua própria ordem", lhe disse de maneira taxativa. Em agosto de 1981 Arrupe sofreu um grave ataque, que João Paulo 2º aproveitou para dar um golpe na direção da Companhia de Jesus. Encarregou a direção desta ao padre Paolo Dezza, jesuíta italiano octogenário, com a ajuda do padre Pittau, provincial da Companhia no Japão, ambos descontentes com a política de abertura de Arrupe. As razões da "intervenção"? A confusão que os jesuítas estavam criando no povo de Deus; seu envolvimento desmedido na atividade sócio-política, com a conseguinte perda da dimensão religiosa; sua vinculação com a teologia da libertação, sobretudo na América Central; tendências secularizantes no seio da Companhia, e formação excessivamente liberal dos jesuítas.
Concordo com Juan Arias, um dos maiores conhecedores do último pontificado, para quem a história dirá se Wojtyla foi o papa da Opus Dei ou se a Opus Dei foi quem preparou os caminhos do arcebispo de Cracóvia. O que acredito é que ambos contribuíram para esvaziar as esperanças de reforma da Igreja depositadas no Concílio Vaticano 2º por cristãos e não cristãos. Com o concílio, a Igreja católica iniciava um novo caminho na história e em tom de libertação. A Opus Dei e João Paulo 2º, entretanto, mudaram o sentido dessa marcha.

Juan José Tamayo-Acostaé diretor da cátedra de Teologia e Ciências das Religiões na Universidade Carlos 3º de Madri e autor de "Fundamentalismos y Diálogo Entre Religiones". Este artigo foi publicado originalmente no "El País"
Tradução de Clara Allain


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