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Massacre em mesquita segue obscuro
Regime paquistanês admite cem mortes na invasão da Mesquita Vermelha, em 2007; envolvidos falam em 2.000
Sob anonimato, agentes reconhecem que mortes superam mil e citam uso de fósforo branco para derreter cadáveres; governo nega
IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL AO PAQUISTÃO
Com o aparente fim da era
Musharraf no Paquistão em
curso, um dos episódios mais
controversos do regime do general-presidente dorme sob
um amontoado de pedras ao lado daquela que foi a mais prestigiada mesquita de Islamabad,
à espera de uma reavaliação.
Pelo menos é isso o que querem parentes de participantes
do cerco à Lal Masjid, nome em
urdu da Mesquita Vermelha,
palco de um sangrento embate
entre estudantes fundamentalistas islâmicos e militares de 3
a 11 de julho do ano passado.
"O governo matou 2.000 pessoas, mas diz que apenas cem
morreram", dispara a irmã dos
dois maulanas, clérigos muçulmanos, que comandaram o
combate do lado dos islâmicos.
Jamila Shaheed falou à Folha
em fevereiro, após longa negociação, já que teme prejudicar o
andamento do julgamento do
seu irmão, Abdul Aziz -o maulana preso no segundo dia de
operação disfarçado sob uma
burca. Seu outro irmão, Abdul
Rashid Ghazi, morreu no cerco.
O governo nega e diz que o
episódio está encerrado. Está
se esforçando: as paredes da
mesquita já não são vermelhas,
mas brancas e beges, e os escombros terraplenados a seu
lado escondem o que foi a escola religiosa feminina usada como bunker pelos estudantes.
Dois prédios governamentais
próximos, depredados, são a
única marca visível restante.
Dois mil mortos
A Folha ouviu dois membros
de agências diferentes dos serviços de inteligência do Paquistão, que pediram anonimato.
Ouviu o mesmo relato de Jamila e outros ativistas: as mortes
foram superiores às 102 (91 civis, incluindo 14 transeuntes
pegos no fogo cruzado, e 11 militares) que o governo admite.
Segundo um dos agentes secretos, são entre 1.000 e 2.000
os mortos, incluindo mulheres
e crianças da escola Jamia Hafsa. Jamila concorda: "Havia na
escola 7.000 mulheres. Perdemos contato com elas, pois
eram de regiões tribais e não
sabemos de suas famílias. Mas
algumas famílias vieram até
nós porque as filhas não apareceram depois do cerco".
É o caso de Ayaz, que veio a
Islamabad em nome de sua
mulher, Amina, que mora perto de Dera Ismail Khan (Fronteira Noroeste), buscar informações com uma ONG que lida com desaparecidos, a Missing
Persons. "Minha mulher só
quer saber o que aconteceu,
mais nada", disse ele à saída
das orações de sexta-feira na
Mesquita Vermelha.
Os detalhes contados pelos
oficiais de inteligência são chocantes, ainda que de difícil
comprovação. Segundo eles,
para esconder o número exato
de mortos na operação, os militares utilizaram o inflamável
químico fósforo branco para
derreter os corpos e os levaram
em sacolas para serem jogados
no rio Indo e seus tributários
em Attock, na Província da
Fronteira Noroeste.
"Isso é frivolidade. O processo após a operação militar, que
felizmente teve bem menos
baixas do que poderia ter tido,
foi transparente", afirma o porta-voz do Ministério do Interior, Javed Iqbal Cheema, que
foi a ligação entre militares e
imprensa durante a crise.
Sua preocupação agora é
com os eventuais atos de vingança de extremistas ligados à
ideologia da mesquita. Havia,
segundo o governo, cerca de
cem militantes islâmicos armados junto a 1.300 alunos -o
ministério diz que as mulheres
foram todas removidas. "Estamos em alerta máximo."
Concorda com ele nesse quesito o general da reserva Asad
Durrani, que foi diretor-geral
do ISI, o mais poderoso serviço
secreto militar do Paquistão.
"Os pashtuns são vingativos, e
a vingança virá", afirmou ele,
referindo-se à etnia dominante
nas áreas tribais entre o Paquistão e o Afeganistão, origem
de muitos dos estudantes.
Foco fundamentalista
A mesquita era um dos maiores centros extremistas islâmicos do mundo até o cerco. Fundada em 1965 pelo pai dos dois
clérigos, o mítico maulana Muhammad Abdullah, viu sucessivas gerações de políticos rezarem em seus pátios às sextas-feiras -notadamente o general
Muhammad Zia-ul-Haq, mais
longevo ditador paquistanês.
Foi na época de Zia-ul-Haq,
que governou entre 1977 e
1988, que o país tornou-se um
foco de fundamentalismo islâmico. Prestigiava líderes religiosos e incorporou elementos
da sharia, a lei islâmica, no sistema judiciário do país. O processo ganhou impulso com os
dólares que os EUA colocaram
para fomentar os mujahidin
(guerreiros sagrados) dispostos
a combater a invasão soviética
do vizinho Afeganistão.
O resto é história: abastecidos por jovens saídos de centros como a Mesquita Vermelha e suas madrassas adjacentes, líderes como Osama bin
Laden ganharam fama no mundo islâmico. Só para, uma vez
que os EUA viram seu objetivo
alcançado, com a retirada de
Moscou em 1988, buscarem
uma agenda própria que culminou no 11 de Setembro.
Desde 2005 o governo de
Pervez Musharraf tentava controlar -pressionado pelos EUA
mas também porque clérigos
de grupos que tentaram assassiná-lo pregavam às sextas-feiras na mesquita- as atividades
dos filhos do maulana Abdullah. Pregadores locais foram ligados aos ataques aos transportes de Londres naquele ano.
Em 2007, os irmãos radicalizaram, lançando uma campanha contra costumes "decadentes", como comprar DVDs,
e contra a demolição da administração de Islamabad de mesquitas em terrenos irregulares.
Quando os tratores chegaram a
um anexo da sua mesquita,
houve incitações de lado a lado
de violência. Em 3 de julho, um
paramilitar de elite foi alvejado
por um estudante, e o impasse
de oito dias começou.
Com o governo de Musharraf
tendo de lidar com um Parlamento hostil e, talvez, saindo
de cena, os parentes se agitam.
"Precisamos saber o que aconteceu", diz Amina Massud Janjua, presidente do Centro Islâmico para Pesquisa e Defesa dos Direitos Humanos.
Independentemente de suas
queixas serem verdadeiras, o
prognóstico não é animador
para os ativistas, apesar de o
novo governo parlamentar do
Paquistão parecer disposto a
mexer em todo o legado de
Musharraf. Foram militares
que tomaram a mesquita. E no
Paquistão, não se mexe com o
Exército, o poder real, qualquer
que seja o governo.
Contra conselho policial, a
reportagem acompanhou na
mesquita preces em fevereiro,
com direito a discurso inflamado do imã contra os dinamarqueses e seus cartuns satirizando Maomé.
Os poucos que aceitaram falar se queixaram do Ocidente e
apontaram para a faixa pedindo a libertação do maulana Abdul Aziz. "Ele pode nos guiar
contra os infiéis", disse o jovem
Riaz, não mais de 20 anos, perguntando a seguir se o repórter
era muçulmano.
A Mesquita Vermelha pode
ter mudado de cor, mas seu espírito permanece. Com o passivo do cerco, é previsível que
volte a ser notícia um dia.
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