São Paulo, domingo, 06 de abril de 2008

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Massacre em mesquita segue obscuro

Regime paquistanês admite cem mortes na invasão da Mesquita Vermelha, em 2007; envolvidos falam em 2.000

Sob anonimato, agentes reconhecem que mortes superam mil e citam uso de fósforo branco para derreter cadáveres; governo nega

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL AO PAQUISTÃO

Com o aparente fim da era Musharraf no Paquistão em curso, um dos episódios mais controversos do regime do general-presidente dorme sob um amontoado de pedras ao lado daquela que foi a mais prestigiada mesquita de Islamabad, à espera de uma reavaliação.
Pelo menos é isso o que querem parentes de participantes do cerco à Lal Masjid, nome em urdu da Mesquita Vermelha, palco de um sangrento embate entre estudantes fundamentalistas islâmicos e militares de 3 a 11 de julho do ano passado.
"O governo matou 2.000 pessoas, mas diz que apenas cem morreram", dispara a irmã dos dois maulanas, clérigos muçulmanos, que comandaram o combate do lado dos islâmicos. Jamila Shaheed falou à Folha em fevereiro, após longa negociação, já que teme prejudicar o andamento do julgamento do seu irmão, Abdul Aziz -o maulana preso no segundo dia de operação disfarçado sob uma burca. Seu outro irmão, Abdul Rashid Ghazi, morreu no cerco.
O governo nega e diz que o episódio está encerrado. Está se esforçando: as paredes da mesquita já não são vermelhas, mas brancas e beges, e os escombros terraplenados a seu lado escondem o que foi a escola religiosa feminina usada como bunker pelos estudantes. Dois prédios governamentais próximos, depredados, são a única marca visível restante.

Dois mil mortos
A Folha ouviu dois membros de agências diferentes dos serviços de inteligência do Paquistão, que pediram anonimato. Ouviu o mesmo relato de Jamila e outros ativistas: as mortes foram superiores às 102 (91 civis, incluindo 14 transeuntes pegos no fogo cruzado, e 11 militares) que o governo admite.
Segundo um dos agentes secretos, são entre 1.000 e 2.000 os mortos, incluindo mulheres e crianças da escola Jamia Hafsa. Jamila concorda: "Havia na escola 7.000 mulheres. Perdemos contato com elas, pois eram de regiões tribais e não sabemos de suas famílias. Mas algumas famílias vieram até nós porque as filhas não apareceram depois do cerco".
É o caso de Ayaz, que veio a Islamabad em nome de sua mulher, Amina, que mora perto de Dera Ismail Khan (Fronteira Noroeste), buscar informações com uma ONG que lida com desaparecidos, a Missing Persons. "Minha mulher só quer saber o que aconteceu, mais nada", disse ele à saída das orações de sexta-feira na Mesquita Vermelha.
Os detalhes contados pelos oficiais de inteligência são chocantes, ainda que de difícil comprovação. Segundo eles, para esconder o número exato de mortos na operação, os militares utilizaram o inflamável químico fósforo branco para derreter os corpos e os levaram em sacolas para serem jogados no rio Indo e seus tributários em Attock, na Província da Fronteira Noroeste.
"Isso é frivolidade. O processo após a operação militar, que felizmente teve bem menos baixas do que poderia ter tido, foi transparente", afirma o porta-voz do Ministério do Interior, Javed Iqbal Cheema, que foi a ligação entre militares e imprensa durante a crise.
Sua preocupação agora é com os eventuais atos de vingança de extremistas ligados à ideologia da mesquita. Havia, segundo o governo, cerca de cem militantes islâmicos armados junto a 1.300 alunos -o ministério diz que as mulheres foram todas removidas. "Estamos em alerta máximo."
Concorda com ele nesse quesito o general da reserva Asad Durrani, que foi diretor-geral do ISI, o mais poderoso serviço secreto militar do Paquistão. "Os pashtuns são vingativos, e a vingança virá", afirmou ele, referindo-se à etnia dominante nas áreas tribais entre o Paquistão e o Afeganistão, origem de muitos dos estudantes.

Foco fundamentalista
A mesquita era um dos maiores centros extremistas islâmicos do mundo até o cerco. Fundada em 1965 pelo pai dos dois clérigos, o mítico maulana Muhammad Abdullah, viu sucessivas gerações de políticos rezarem em seus pátios às sextas-feiras -notadamente o general Muhammad Zia-ul-Haq, mais longevo ditador paquistanês.
Foi na época de Zia-ul-Haq, que governou entre 1977 e 1988, que o país tornou-se um foco de fundamentalismo islâmico. Prestigiava líderes religiosos e incorporou elementos da sharia, a lei islâmica, no sistema judiciário do país. O processo ganhou impulso com os dólares que os EUA colocaram para fomentar os mujahidin (guerreiros sagrados) dispostos a combater a invasão soviética do vizinho Afeganistão.
O resto é história: abastecidos por jovens saídos de centros como a Mesquita Vermelha e suas madrassas adjacentes, líderes como Osama bin Laden ganharam fama no mundo islâmico. Só para, uma vez que os EUA viram seu objetivo alcançado, com a retirada de Moscou em 1988, buscarem uma agenda própria que culminou no 11 de Setembro.
Desde 2005 o governo de Pervez Musharraf tentava controlar -pressionado pelos EUA mas também porque clérigos de grupos que tentaram assassiná-lo pregavam às sextas-feiras na mesquita- as atividades dos filhos do maulana Abdullah. Pregadores locais foram ligados aos ataques aos transportes de Londres naquele ano.
Em 2007, os irmãos radicalizaram, lançando uma campanha contra costumes "decadentes", como comprar DVDs, e contra a demolição da administração de Islamabad de mesquitas em terrenos irregulares. Quando os tratores chegaram a um anexo da sua mesquita, houve incitações de lado a lado de violência. Em 3 de julho, um paramilitar de elite foi alvejado por um estudante, e o impasse de oito dias começou.
Com o governo de Musharraf tendo de lidar com um Parlamento hostil e, talvez, saindo de cena, os parentes se agitam. "Precisamos saber o que aconteceu", diz Amina Massud Janjua, presidente do Centro Islâmico para Pesquisa e Defesa dos Direitos Humanos.
Independentemente de suas queixas serem verdadeiras, o prognóstico não é animador para os ativistas, apesar de o novo governo parlamentar do Paquistão parecer disposto a mexer em todo o legado de Musharraf. Foram militares que tomaram a mesquita. E no Paquistão, não se mexe com o Exército, o poder real, qualquer que seja o governo.
Contra conselho policial, a reportagem acompanhou na mesquita preces em fevereiro, com direito a discurso inflamado do imã contra os dinamarqueses e seus cartuns satirizando Maomé.
Os poucos que aceitaram falar se queixaram do Ocidente e apontaram para a faixa pedindo a libertação do maulana Abdul Aziz. "Ele pode nos guiar contra os infiéis", disse o jovem Riaz, não mais de 20 anos, perguntando a seguir se o repórter era muçulmano.
A Mesquita Vermelha pode ter mudado de cor, mas seu espírito permanece. Com o passivo do cerco, é previsível que volte a ser notícia um dia.


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