São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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ARTIGO

1968, o ano que terminou em 2007

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PARIS

O rosto e o sorriso, bonitos, de dentes bem brancos, são os mesmos de sempre. O slogan é também o mesmo: "La France présidente - Ségolène Royal", com o "présidente" no feminino (o masculino não tem o "e" final). Mas mudou a cor nos cartazes e folhetos de propaganda da candidata socialista à Presidência da França: saiu o vermelho, saiu até o rosa, entrou o azul.
Como o vermelho é a mais clássica cor da esquerda, a sua substituição acaba sendo todo um símbolo: os filhos (ou netos) do Maio de 1968, o ano de todas as revoltas, desbotaram.
Já não se grita "seja razoável, peça o impossível". A única e modestíssima utopia que o socialismo francês propõe agora, quase 40 anos depois da última revolução no planeta, ainda que inacabada, é construir "um país de empreendedores", como disse Royal no debate com o direitista Nicolas Sarkozy, na quarta-feira.
Os herdeiros, presumíveis ou reais de 1968, vêm, na verdade, desbotando há algum tempo, desde que ruiu o Muro de Berlim, em 1989. O que permite a Sarkozy pedir publicamente que se pregue o último prego no caixão do mitológico "mai 68".

Hora da ordem
Para ele, no mais ortodoxo raciocínio da direita, "os herdeiros de maio de 68 impuseram a idéia de que vale tudo, que não há diferença entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre o belo e o feio; tentaram fazer crer que o aluno vale tanto quanto o professor, (...) que a vítima conta menos que o delinqüente, que se acabara a autoridade, que não há nenhuma norma, nada estava proibido".
É paradoxal que, do outro lado do arco-íris ideológico, da esquerda pura, venha outro necrológio de maio de 68, elaborado por Didier Eribon, hoje professor de Filosofia em Berkeley (Califórnia), ex-jornalista da revista "Le Nouvel Observateur", em um livro sobre o que chama de "revolução conservadora" e seus efeitos sobre a esquerda francesa.
Em entrevista ao jornal "Le Monde", historicamente próximo dos socialistas, Eribon constata: "As pessoas que tinham 20 anos em maio de 1968 chegam a postos de responsabilidade e se engajam em uma sorte de reconversão profissional de seu engajamento militante: tornam-se jornalistas, publicitários, conselheiros de estratégia de empresas ou entram em postos ministeriais. Renunciam ao fervor crítico e se reconciliam com a ordem".

Guinada nas alianças
Bingo. Vale para a França, vale para todos os países em que houve revoltas estudantis semelhantes há 40 anos. Vale, por exemplo, para José Dirceu, o ex-ministro que foi uma das estrelas do 68 brasileiro.
Na França, a "reconciliação com a ordem" inclui uma guinada também nas alianças do socialismo. Para ganhar a Presidência, em 1981, o PS se aliou ao Partido Comunista, com o qual estabeleceu um "Programa Comum de Governo".
Para tentar ganhar agora, "o interlocutor principal da esquerda não é mais a extrema esquerda, mas um partido até agora ancorado à direita", como escreve Patrick Jarreau, colunista do "Monde".
Refere-se, como é óbvio, à tentativa de aliança com o centrista François Bayrou, terceiro colocado no primeiro turno e até anteontem aliado do conservador Jacques Chirac.

Ruptura à direita
A guinada torna possível a outro analista, Pascal Perrineau (do Centro de Pesquisas Políticas da "Sciences Po"), ousar dizer que "os temas da ruptura e da mudança passaram da esquerda para a direita. Nicolas Sarkozy deu provas de uma melhor compreensão da evolução de valores da sociedade como o trabalho e a autoridade".
Um pouco na mesma linha vai Dominique Moisi, do Ifri (Instituto Francês de Relações Internacionais), para quem "a esquerda é liberal em valores culturais e sexuais, mas conservadora, se não reacionária, em princípios econômicos, enquanto a direita é exatamente o inverso".
Por mais que tais conceitos estejam impregnados de gostos pessoais, o fato é que nunca como agora a direita esteve tão na ofensiva conceitual.
É sintomático que a conglomerado financeiro "Société Générale" tenha lançado, logo no início da campanha, certificados de ações chamados "100% Elections 2007". Trata-se uma oferta de carteiras de ações, ditas de esquerda ou de direita (de acordo com os setores econômicos das firmas que as compunham), capazes de se valorizar segundo a aplicação dos programas de Sarkozy ou Royal. Deu quase empate: as ações de "direita" tiveram um ganho de 4,2% desde o seu lançamento, ao passo que as de "esquerda" avançaram 3,5%, o que não chega a ser uma diferença realmente substancial.
Resumo: os filhos ou netos de 1968 não queimam a Bolsa, ganham dinheiro nela.


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