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ARTIGO
1968, o ano que terminou em 2007
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PARIS
O rosto e o sorriso, bonitos,
de dentes bem brancos, são os
mesmos de sempre. O slogan é
também o mesmo: "La France
présidente - Ségolène Royal",
com o "présidente" no feminino (o masculino não tem o "e"
final). Mas mudou a cor nos
cartazes e folhetos de propaganda da candidata socialista à
Presidência da França: saiu o
vermelho, saiu até o rosa, entrou o azul.
Como o vermelho é a mais
clássica cor da esquerda, a sua
substituição acaba sendo todo
um símbolo: os filhos (ou netos) do Maio de 1968, o ano de
todas as revoltas, desbotaram.
Já não se grita "seja razoável,
peça o impossível". A única e
modestíssima utopia que o socialismo francês propõe agora,
quase 40 anos depois da última
revolução no planeta, ainda que
inacabada, é construir "um país
de empreendedores", como
disse Royal no debate com o direitista Nicolas Sarkozy, na
quarta-feira.
Os herdeiros, presumíveis ou
reais de 1968, vêm, na verdade,
desbotando há algum tempo,
desde que ruiu o Muro de Berlim, em 1989. O que permite a
Sarkozy pedir publicamente
que se pregue o último prego no
caixão do mitológico "mai 68".
Hora da ordem
Para ele, no mais ortodoxo
raciocínio da direita, "os herdeiros de maio de 68 impuseram a idéia de que vale tudo,
que não há diferença entre o
bem e o mal, entre o certo e o
errado, entre o belo e o feio;
tentaram fazer crer que o aluno
vale tanto quanto o professor,
(...) que a vítima conta menos
que o delinqüente, que se acabara a autoridade, que não há
nenhuma norma, nada estava
proibido".
É paradoxal que, do outro lado do arco-íris ideológico, da
esquerda pura, venha outro necrológio de maio de 68, elaborado por Didier Eribon, hoje professor de Filosofia em Berkeley
(Califórnia), ex-jornalista da
revista "Le Nouvel Observateur", em um livro sobre o que
chama de "revolução conservadora" e seus efeitos sobre a esquerda francesa.
Em entrevista ao jornal "Le
Monde", historicamente próximo dos socialistas, Eribon
constata: "As pessoas que tinham 20 anos em maio de 1968
chegam a postos de responsabilidade e se engajam em uma
sorte de reconversão profissional de seu engajamento militante: tornam-se jornalistas,
publicitários, conselheiros de
estratégia de empresas ou entram em postos ministeriais.
Renunciam ao fervor crítico e
se reconciliam com a ordem".
Guinada nas alianças
Bingo. Vale para a França, vale para todos os países em que
houve revoltas estudantis semelhantes há 40 anos. Vale, por
exemplo, para José Dirceu, o
ex-ministro que foi uma das estrelas do 68 brasileiro.
Na França, a "reconciliação
com a ordem" inclui uma guinada também nas alianças do
socialismo. Para ganhar a Presidência, em 1981, o PS se aliou
ao Partido Comunista, com o
qual estabeleceu um "Programa Comum de Governo".
Para tentar ganhar agora, "o
interlocutor principal da esquerda não é mais a extrema
esquerda, mas um partido até
agora ancorado à direita", como escreve Patrick Jarreau, colunista do "Monde".
Refere-se, como é óbvio, à
tentativa de aliança com o centrista François Bayrou, terceiro
colocado no primeiro turno e
até anteontem aliado do conservador Jacques Chirac.
Ruptura à direita
A guinada torna possível a
outro analista, Pascal Perrineau (do Centro de Pesquisas
Políticas da "Sciences Po"), ousar dizer que "os temas da ruptura e da mudança passaram da
esquerda para a direita. Nicolas
Sarkozy deu provas de uma melhor compreensão da evolução
de valores da sociedade como o
trabalho e a autoridade".
Um pouco na mesma linha
vai Dominique Moisi, do Ifri
(Instituto Francês de Relações
Internacionais), para quem "a
esquerda é liberal em valores
culturais e sexuais, mas conservadora, se não reacionária, em
princípios econômicos, enquanto a direita é exatamente o
inverso".
Por mais que tais conceitos
estejam impregnados de gostos
pessoais, o fato é que nunca como agora a direita esteve tão na
ofensiva conceitual.
É sintomático que a conglomerado financeiro "Société Générale" tenha lançado, logo no
início da campanha, certificados de ações chamados "100%
Elections 2007". Trata-se uma
oferta de carteiras de ações, ditas de esquerda ou de direita
(de acordo com os setores econômicos das firmas que as
compunham), capazes de se valorizar segundo a aplicação dos
programas de Sarkozy ou Royal. Deu quase empate: as ações
de "direita" tiveram um ganho
de 4,2% desde o seu lançamento, ao passo que as de "esquerda" avançaram 3,5%, o que não
chega a ser uma diferença realmente substancial.
Resumo: os filhos ou netos de
1968 não queimam a Bolsa, ganham dinheiro nela.
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