São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mesmo solidários, sírios se ressentem de queda na qualidade de vida

DO ENVIADO ESPECIAL A DAMASCO

Embora solidários com a hospitalidade de seu governo, os sírios já começam a demonstrar rancor com a declínio de sua qualidade de vida causada pelo fluxo de refugiados iraquianos. Não há demonstrações públicas do descontentamento, mas os próprios iraquianos reconhecem que o país mudou com a invasão de refugiados, e não para melhor.
Nas escolas o quadro é de superlotação, levando ao ponto de saturação um sistema educacional já no limite. De acordo com um relatório publicado pelo jornal oficial "Al-Baath" em fevereiro, cerca de 75 mil estudantes iraquianos foram matriculados em escolas sírias somente neste ano. O desemprego, que já flutuava em torno dos 11% antes da queda de Saddam Hussein, aumentou ainda mais entre os sírios, incapazes de competir com refugiados que trabalham por menor salário.
Também começaram a surgir registros de delitos associados aos recém-chegados, uma indesejada novidade num país onde o crime era algo praticamente inexistente. O problema mais comum é o furto de celulares, mas também há assaltos a residências e roubos de carros, disse à Folha um funcionário do governo, pedindo para não ser identificado.
"Tenho pena dos sírios", confessa a documentarista iraquiana Rana al-Aioubi, caminhando pelo centro de Damasco, enquanto aponta os compatriotas que vai reconhecendo no caminho, pelo sotaque ou pelos trajes. "Os preços subiram, o desemprego aumentou e ninguém ajuda a Síria."
De fato, só recentemente, depois que o governo sírio afirmou que precisaria de US$ 1 bilhão para absorver o impacto dos refugiados, a ONU pareceu ter despertado para o problema, dando início a uma campanha para arrecadar fundos. Mesmo se alcançada, porém, a meta de US$ 60 milhões ainda será insuficiente para o tamanho do desafio humanitário.

Bairros rebatizados
Sayida Zaynab, neta do profeta Maomé, está sepultada e dá nome a uma das principais concentrações de refugiados iraquianos em Damasco. É nas proximidades de seu túmulo, local de peregrinação para os muçulmanos xiitas, que vive grande parte dos refugiados iraquianos na capital síria. Suas ruas e vielas foram rebatizadas informalmente com nomes de cidades iraquianas.
Para o motorista Bassem Ageri, 38, deixar a mulher e os três filhos na cidade de Basra, no sul do Iraque, não foi só uma questão de sobrevivência. Foi uma busca por subsistência. Há dez meses ele desistiu de procurar passageiros na cidade natal, onde a violência mantinha a população dentro de casa em um auto-imposto toque de recolher, e passou a transportar iraquianos em fuga entre Bagdá e Damasco.
"Para mim a Síria é uma parada temporária. Meu objetivo é sair daqui, de preferência para a Europa", diz Bassem, no quarto com paredes cobertas de fotos do Iraque e sem banheiro que divide com outros três refugiados. "Pedi refúgio até na embaixada brasileira, mas fui rejeitado."
Embora a divisão entre sunitas e xiitas não seja tão pronunciada entre os iraquianos na Síria como no país que abandonaram, os refugiados não escondem que o ódio sectário é um dos maiores responsáveis pelo êxodo. "Larguei um bom emprego, casa e um BMW 1992, que ainda deve estar lá, me esperando", diz o sunita Zeid Abdelkam, 33, que não chega a ganhar US$100 por mês como vendedor, metade do salário mensal médio na Síria.
Zeid vive com a família no bairro de Jaramana, rebatizado de Karrada, nome de um distrito de Bagdá. "Tive que largar tudo por causa da perseguição xiita aos sunitas, que começou depois da queda de Saddam Hussein", diz Zeid, antes de completar com um suspiro saudoso: "Que Deus o tenha".
Em sua loja de artigos esportivos num beco estreito de Sayida Zaynab, Mahdi Gata mostra, orgulhoso, uma camisa da seleção de seu país ao lado de outra do Brasil, com o nome de Ronaldinho às costas. Qual das duas vende mais? "A iraquiana sai mais entre os refugiados, que procuram alguma coisa para mostrar orgulho de seu país", diz Mahdi, para arrematar em seguida, com um sorriso: "Mas a do Brasil fica em segundo, muito na frente da argentina".


Texto Anterior: Iraquianos criam nova Bagdá na Síria
Próximo Texto: Artigo: Choque de Bush e Congresso evoca Vietnã
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.