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Mesmo solidários, sírios se ressentem de queda na qualidade de vida
DO ENVIADO ESPECIAL A DAMASCO
Embora solidários com a
hospitalidade de seu governo,
os sírios já começam a demonstrar rancor com a declínio de
sua qualidade de vida causada
pelo fluxo de refugiados iraquianos. Não há demonstrações públicas do descontentamento, mas os próprios iraquianos reconhecem que o país
mudou com a invasão de refugiados, e não para melhor.
Nas escolas o quadro é de superlotação, levando ao ponto
de saturação um sistema educacional já no limite. De acordo
com um relatório publicado pelo jornal oficial "Al-Baath" em
fevereiro, cerca de 75 mil estudantes iraquianos foram matriculados em escolas sírias somente neste ano. O desemprego, que já flutuava em torno dos
11% antes da queda de Saddam
Hussein, aumentou ainda mais
entre os sírios, incapazes de
competir com refugiados que
trabalham por menor salário.
Também começaram a surgir
registros de delitos associados
aos recém-chegados, uma indesejada novidade num país onde
o crime era algo praticamente
inexistente. O problema mais
comum é o furto de celulares,
mas também há assaltos a residências e roubos de carros, disse à Folha um funcionário do
governo, pedindo para não ser
identificado.
"Tenho pena dos sírios",
confessa a documentarista iraquiana Rana al-Aioubi, caminhando pelo centro de Damasco, enquanto aponta os compatriotas que vai reconhecendo
no caminho, pelo sotaque ou
pelos trajes. "Os preços subiram, o desemprego aumentou
e ninguém ajuda a Síria."
De fato, só recentemente, depois que o governo sírio afirmou que precisaria de US$ 1 bilhão para absorver o impacto
dos refugiados, a ONU pareceu
ter despertado para o problema, dando início a uma campanha para arrecadar fundos.
Mesmo se alcançada, porém, a
meta de US$ 60 milhões ainda
será insuficiente para o tamanho do desafio humanitário.
Bairros rebatizados
Sayida Zaynab, neta do profeta Maomé, está sepultada e dá
nome a uma das principais concentrações de refugiados iraquianos em Damasco. É nas
proximidades de seu túmulo,
local de peregrinação para os
muçulmanos xiitas, que vive
grande parte dos refugiados
iraquianos na capital síria. Suas
ruas e vielas foram rebatizadas
informalmente com nomes de
cidades iraquianas.
Para o motorista Bassem
Ageri, 38, deixar a mulher e os
três filhos na cidade de Basra,
no sul do Iraque, não foi só uma
questão de sobrevivência. Foi
uma busca por subsistência. Há
dez meses ele desistiu de procurar passageiros na cidade natal, onde a violência mantinha a
população dentro de casa em
um auto-imposto toque de recolher, e passou a transportar
iraquianos em fuga entre Bagdá
e Damasco.
"Para mim a Síria é uma parada temporária. Meu objetivo
é sair daqui, de preferência para a Europa", diz Bassem, no
quarto com paredes cobertas
de fotos do Iraque e sem banheiro que divide com outros
três refugiados. "Pedi refúgio
até na embaixada brasileira,
mas fui rejeitado."
Embora a divisão entre sunitas e xiitas não seja tão pronunciada entre os iraquianos na Síria como no país que abandonaram, os refugiados não escondem que o ódio sectário é
um dos maiores responsáveis
pelo êxodo. "Larguei um bom
emprego, casa e um BMW
1992, que ainda deve estar lá,
me esperando", diz o sunita
Zeid Abdelkam, 33, que não
chega a ganhar US$100 por mês
como vendedor, metade do salário mensal médio na Síria.
Zeid vive com a família no
bairro de Jaramana, rebatizado
de Karrada, nome de um distrito de Bagdá. "Tive que largar
tudo por causa da perseguição
xiita aos sunitas, que começou
depois da queda de Saddam
Hussein", diz Zeid, antes de
completar com um suspiro saudoso: "Que Deus o tenha".
Em sua loja de artigos esportivos num beco estreito de Sayida Zaynab, Mahdi Gata mostra, orgulhoso, uma camisa da
seleção de seu país ao lado de
outra do Brasil, com o nome de
Ronaldinho às costas. Qual das
duas vende mais? "A iraquiana
sai mais entre os refugiados,
que procuram alguma coisa para mostrar orgulho de seu
país", diz Mahdi, para arrematar em seguida, com um sorriso: "Mas a do Brasil fica em segundo, muito na frente da argentina".
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