São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2005

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ARTIGO

Quando é que daremos um basta coletivo à guerra?


Ter seu filho assassinado por mentiras, erros e traições é sombrio e triste. Ninguém deveria ser obrigado a suportar isso
CINDY SHEEHAN

A invasão e ocupação imoral do Iraque já custaram muito ao mundo. George e a guerra insensata que ele optou por travar já custaram ao contribuinte americano bilhões de dólares que poderiam ter sido mais bem gastos em nosso próprio país.
A julgar pelo Katrina, o Iraque custou ao nosso país boa parte de sua segurança. Custou aos EUA qualquer boa vontade de que pudéssemos desfrutar na comunidade mundial. Custou aos EUA a boa vontade pós-11 de Setembro de quase o mundo inteiro. Nós, americanos, viramos alvo de ridículo da comunidade mundial.
Não apenas nossa liderança indiferente e insensata é vista com desprezo, como também nós, o povo, somos desdenhados porque reelegemos George para um segundo mandato, e não só isso: estamos deixando que ele continue a conduzir nosso país à ruína.
O preço que muitos de nós estamos pagando é muito maior do que apenas o custo monetário ou a perda de reputação. Mais de 2.000 famílias americanas pagaram por essa insanidade com seus entes queridos. Mais de 15 mil de nossos jovens estão feridos, sendo que muitos deles tiveram membros amputados. A Administração de Veteranos estima que mais de um quarto de nossos jovens venham a voltar para casa sofrendo de desordem de estresse pós-traumático (DEPT). Acredito que o número real venha a ser maior, porque sei de muitos casos em que as Forças Armadas se recusam a permitir que os soldados busquem tratamento para a DEPT. Muitos deles são enviados de volta à batalha se ousam sugerir que possam estar sofrendo de DEPT. Mesmo que não estejam feridos emocionalmente ou fisicamente, ou então mortos, nossos soldados não vão voltar para casa inteiros.
Eu estava diante da Casa Branca outro dia quando foi anunciado o indiciamento de Scooter [Lewis Libby, ex-chefe-de-gabinete do vice-presidente dos EUA, Dick Cheney]. Eu ajudava a segurar uma faixa que dizia "Apóie nossas tropas: traga-as para casa agora".
Quando fomos informados do indiciamento, muitos de nós, manifestantes que estávamos diante da Casa Branca, aplaudimos, felizes e aliviados. Finalmente alguém poderia ser responsabilizado pelas mentiras que levaram nosso país à desastrosa invasão do Iraque. Mas eu não aplaudi. Eu larguei minha ponta da faixa, me sentei na calçada e chorei.
Scooter não passa de o cãozinho de estimação de Cheney. Ele e essa administração não fazem nada a não ser que o golpe sujo seja analisado e planejado de modo a provocar danos máximos para a parte que causou a ofensa e danos mínimos para Bush e companhia limitada.
Os criminosos que estão no poder queriam prejudicar Joe Wilson e sua família porque Joe teve a audácia e a temeridade de chamá-los de mentirosos, e de fazê-lo com tamanha inteligência e presteza que os vigaristas acharam isso insuportável. Se essa administração desonesta deixasse Joe Wilson falar a verdade, chamá-la de mentirosa e safar-se, quem seriam os próximos? Colin Powell? Judith Miller? A grande imprensa? Isso poderia acontecer.
Chorei porque há pessoas neste mundo que mentiram sobre coisas menores e foram mais duramente castigadas. Chorei porque perto de mim havia um agente disfarçado da direita segurando um cartaz que dizia "Joguem Cindy em Abu Ghraib", quando há criminosos de guerra e pessoas que lucram com a guerra de maneira imoral correndo soltos em nosso país. Chorei porque George, Dick, Condi, Colin, Alberto, Donald, Scooter, Paul, Karl, Judith, O'Reilly, Hannity etc. mentiram sobre as razões de invadirmos o Iraque e porque, graças às suas mentiras, meu filho, que poucas vezes disse qualquer coisa senão a verdade, morreu.
Os mentirosos e as mentiras que levaram os EUA a invadir o Iraque são muitos e bem documentados. (Uma vez, só de brincadeira, fiz uma busca no Google por "George Bush/mentiras". Obtive 272 mil respostas.) As mentiras que mantêm a ocupação são as mesmas. Agora os mentirosos estão começando a bater o tambor de guerra para a invasão da Síria.
Nesta manhã recebi o telefonema de uma mãe cujo filho cometeu suicídio "acidental" no Iraque há sete meses. Ela está transtornada de dor. Eu me lembro de que entre o sétimo e o nono mês é a fase mais difícil. Acho que isso acontece porque é quando o choque profundo começa a passar, e a dor horrenda começa.
Eu me recordo bem demais dos dias em que minha dor era tão grande que eu nem sequer sabia o que fazer com ela. Eu tinha medo de que, se começasse a gritar, não conseguiria parar até estourar os vasos sanguíneos do meu cérebro. Tinha medo de que, se começasse a bater em alguma coisa, não conseguisse parar até destruí-la por completo. Tinha medo de que seria obrigada a passar todos os dias de minha vida com uma dor tão intensa e avassaladora no coração de que isso acabaria me consumindo.
O nono mês depois de Casey ser morto foi absolutamente o mais devastador para mim. Eu me lembrava dos primeiros nove meses de sua vida, ainda em meu útero, protegido e quentinho.
Recordava como seu pai e eu havíamos aguardado seu nascimento com tanta expectativa e tanta alegria. Em contraste, os primeiros nove meses que ele passou no útero gelado de nossa mãe terra foram tão sombrios, tristes e dolorosos. Ter seu filho assassinado por mentiras, erros e traições é sombrio e triste.
Ninguém deveria ser obrigado a suportar o que nós estamos suportando.
Pude dizer à mãe agoniada que, se ela conseguisse suportar os dois meses seguintes, talvez conseguisse começar a respirar um pouco, a sorrir um pouco de vez em quando, talvez até sinceramente.
Nós que fizemos o "sacrifício máximo" conhecemos o verdadeiro custo da guerra.
Noventa e duas famílias o conheceram em outubro, um dos meses mais sangrentos da guerra. Sete dos nossos soldados corajosos foram mortos quando escrevo, e em pouco tempo suas famílias saberão quanta dor as mentiras da administração Bush vão lhes causar, quanta paz, quantas noites de sono e quanta alegria custam essas mentiras.
Para todas as outras pessoas, o verdadeiro custo da guerra é o seguinte:
1) mães e pais que têm suas almas e seus corações violentamente dilacerados. A culpa avassaladora que lhes invade em ondas incessantes e implacáveis;
2) maridos e mulheres enlutados que enterram seus parceiros prematuramente. Dias e noites que se estendem à sua frente repletos de solidão e sofrimento;
3) irmãos e irmãs que têm partes integrais de suas histórias cruelmente arrancadas deles. Feriados, aniversários e outras festas de família que nunca mais serão os mesmos;
4) filhos e filhas aos quais é injustamente negado o direito humano fundamental de crescer com pai e mãe a seu lado;
5) outros familiares e amigos que choram e sentem saudade de alguém que era jovem demais para morrer em uma ocupação na qual os mortos da guerra foram convencidos de que seriam recebidos com flores e chocolates pelo povo iraquiano, que os veria como libertadores;
6) um país soberano que não constituía ameaça aos Estados Unidos da América que está em ruínas, com dezenas de milhares de seus cidadãos inocentes massacrados sem motivo justo.
Quando nos ergueremos juntos, como país, e dar um basta coletivo a isso? Venho gritando "basta" até ficar rouca e até deixar as pessoas fartas de ouvir minha voz.
Quantos mais vamos permitir que os mentirosos em série nos roubem?
Para mim, a resposta deve ser: nem um único a mais.

Cindy Sheehan, 48, é mãe de Casey, soldado americano morto no Iraque em 4 de abril de 2004. Ela ganhou atenção mundial quando, em agosto passado, acampou diante do rancho do presidente George W. Bush, no Texas, para lhe pedir explicações sobre os motivos da invasão do Iraque. Desde então, tornou-se líder do movimento antiguerra nos EUA.

Este artigo foi publicado originalmente no site www.informationclearinghouse.info


Tradução de Clara Allain

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