São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2005

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EUA

O pesado "The Apprentice", do ex-assessor de Dick Cheney envolvido em escândalo de Washington, agora é alvo de disputa no mercado

Libby fez livro pedófilo, zoófilo e incestuoso

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Setsuo, uma garota virgem de dez anos de idade, é colocada pela cafetina do prostíbulo em que mora, numa aldeia japonesa de 1903, numa gaiola onde vive um urso treinado. Lá, o animal a violentará repetidamente, diante de uma platéia de homens, para que ela se torne frígida, o que a ajudará na regra básica de sua profissão: não se apaixonar pelo cliente.
De que cabeça poderia ter saído a idéia do pesado período acima, que consta do romance "The Apprentice" (a aprendiz), escrito em 1996? Do republicano Lewis "Scooter" Libby, 56, ex-chefe-de-gabinete do vice-presidente dos EUA, Dick Cheney (de quem também era conselheiro especial para assuntos de segurança nacional), e ex-assessor do presidente George W. Bush.
É o mesmo Libby que pediu exoneração de seu cargo na Casa Branca na sexta-feira retrasada e responde a cinco acusações no processo que investiga o vazamento da identidade de uma espiã da CIA, mulher do ex-embaixador Joseph Wilson, um crítico da invasão do Iraque por Bush que escreveu artigo no "New York Times" desmentindo uma das alegações da Casa Branca para a guerra: a de que Saddam Hussein tentou comprar urânio do Níger. Wison havia viajado ao país africano em missão da CIA e, no artigo, revelou que nada encontrara que confirmasse a suspeita.
A revelação da identidade de Valerie Plame é um crime que pode levar Libby à cadeia e cuja ordem pode ter vindo de cima como uma retaliação a Wilson.

Carcaça de cervo
Mas voltemos ao livro por um momento. Ambientado numa nevasca no Japão da virada do século 19, teria custado duas décadas de trabalho e burilação ao autor. E é pródigo em bizarrices. Algumas:
* um samurai morre, e seus irmãos violentam a filha dele;
* outro personagem faz sexo com a carcaça de um cervo;
* a tal menina do começo (leia trecho traduzido nesta página) é levada ao prostíbulo porque seus parentes, especialmente um tio velho, começam a assediá-la sexualmente, andando sempre abraçados com ela nua no colo.
Não é exatamente o tipo de literatura que se espera de um burocrata que até recentemente privava dos círculos íntimos da administração mais conservadora a se instalar na Casa Branca desde Ronald Reagan (1981-1989), liderada por George W. Bush, que por sua vez encabeça a guinada à direita do país e sob cuja vista ascende a ultradireita religiosa.
Libby renunciou após ser indiciado por falso testemunho, falsa instrução e obstrução da Justiça. Se condenado, pode pegar 30 anos. Foi a primeira vez, em mais de 130 anos, que um funcionário da Casa Branca foi indiciado.
Desde então, a procura pelas poucas cópias do livro que ainda estão em estoque nas livrarias e nos sites dispararam e viraram item de colecionador. No mercado livre da Amazon, para quem não agüenta esperar a demora na entrega oficial, pede-se US$ 2.100 por um exemplar de capa dura, o de 1996. A versão de capa mole, de 2002, sai por no mínimo US$ 129.
Em 24 horas, o original passou do 33.903º lugar entre todos os milhares de livros vendidos pela empresa para 16.279º. O de capa mole pulou para 1.290º, à frente de títulos como o primeiro livro de Harry Potter, hoje em 1.633º.

Conversas em off
A blogosfera está em polvorosa. "Pelo menos, agora nós já sabemos de onde as técnicas de tortura das prisões de Abu Ghraib, no Iraque, e Guantánamo, em Cuba, vieram", escreveu Walter Hemker, após ler "The Apprentice".
A Folha pediu que o republicano comentasse o livro e o sucesso literário que a obra alcança agora, depois de um lançamento tímido nos anos 90. Procurou o advogado que o representa, Theodore Wells, do escritório nova-iorquino Paul, Weiss, Rifkind, Wharton & Garrison. Não obteve resposta até a conclusão desta edição.
Misterioso, I. Lewis "Scooter" Libby não gosta de falar com a imprensa -pelo menos não "on the record", jargão para entrevistas que podem ser reproduzidas. É apontado como delator do nome da espiã da CIA em conversas em "off " mantidas há dois anos com jornalistas norte-americanos, depois intimados a depor.
Faz mistério sobre seu passado, e há controvérsias inclusive sobre seu verdadeiro nome. O "I" inicial já foi apontado como "Irv", "Irving" e "Irve" pelo próprio -o último parece o mais provável, por ser o mesmo nome do pai e constar de seu livro de graduação na Universidade Yale, dos EUA.

Os álamos tremem
Já o apelido "Scooter", literalmente "patinete", em inglês, também já foi explicado de diversas maneiras por Libby. Em certas ocasiões, atribuiu ao apelido de um jogador de beisebol de sua infância, Phil "Scooter" Rizzuto; em outras, disse que veio do pai, que o criou depois de ver o filho correndo em seu "chiqueirinho".
Numa das raras vezes em que tocou no assunto "The Apprentice", em entrevista ao programa de Larry King em 2002, disse: "Refugiei-me no Colorado, tomei tequila e escrevi (o livro)". A recepção da crítica variou de "sessão de cartas de revistas pornográficas" a "doentio". Essa, porém, não seria sua última aventura literária.
Em carta enviada para a repórter Judith Miller, do "New York Times", em que a liberava para citar seu nome como a pessoa que revelou a identidade da agente, o que a jornalista se recusava a fazer na Justiça e que lhe valeu 85 dias na cadeia, ele escreveu: "Você foi presa no verão. É outono agora... No Oeste, onde você costuma passar as férias, os álamos ainda tremem. Eles tremem juntos, pois as raízes os conectam. Volte para o seu trabalho -e para a vida".

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