São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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AMÉRICA DO SUL

Dois anos depois do auge da crise, esperança começa a voltar, mas sentimento de impotência continua forte

Argentinos ainda sentem frustração e raiva

CAROLINA VILA-NOVA
DE BUENOS AIRES

A maior crise socioeconômica e política da história da Argentina deixou marcas duradouras no espírito argentino. Embora a esperança comece a voltar, os sentimentos de frustração, raiva e angústia ainda são fortes no país dois anos depois do auge da crise.
O artífice da esperança recém-recuperada atende pelo nome de Néstor Kirchner, eleito com 22% dos votos. O início de seu governo, em maio de 2003, deu fôlego ao desejo de mudança latente em grande parte da população, ansiosa por uma solução para o drama da crise. Mesmo os menos otimistas se dispuseram a dar uma "chance" ao novo presidente.
Mas a consciência da permanência dos problemas resultantes de cinco anos de recessão, como altas taxas de desemprego e de pobreza, seguiu alimentando sentimentos que pesquisas apontavam como predominantes no pico da crise. A diferença agora é o ímpeto pela mudança.
"Os sentimentos mais profundos que ficaram são raiva e desilusão com a realidade", diz Cristian Trepichio, 33. "Mas se pode ver como positivo o fato de ter chegado a uma situação limite e daí tentar encontrar outros caminhos."
"A sensação é de tratar de levantar-se. Estamos tratando de ver o que aconteceu com cada um, o que fizemos ou não fizemos para chegar ao desastre a que chegamos", diz Gabriela Corvalan, 36, psicóloga social desempregada.
E o que aconteceu com o orgulho, marca tradicional do argentino? "Sabe que sentimento vem antes do orgulho?", rebate Hugo Corvalan, 68, pai de Gabriela. "Se se pode viver bem ou mal. Mas se tudo é como é, orgulho de quê? Para sentir orgulho tenho que me remeter a 200 anos atrás."
"Não se pode sentir orgulho", concorda Cristian. "É como ter um amor platônico, que não é correspondido."
Crise anímica. Esse foi o nome dado a pesquisadores para a perda de auto-estima e a desmoralização experimentadas pelo argentino durante a crise.
Segundo pesquisa realizada pela consultoria Ricardo Rouvier e Associados e a Fundação Antea, os principais sentimentos manifestados em 2001 eram angústia, tristeza e amargura (55,9%).
No ano seguinte, esses sentimentos permaneceram no alto da lista (46,6%). Além disso, duplicaram os sentimentos de raiva (32,6%) e aumentaram os de decepção (20,6%)
Em 2003, após a posse de Kirchner, a pesquisa detectou uma recuperação do sentimento de esperança, que era mínimo nos anos anteriores e passou a ocupar o segundo lugar (47,5%). Entre as razões mencionadas estavam o novo governo e a sensação de que o país iria para frente.
Mas a maioria ainda expressava angústia, tristeza e amargura como sentimentos predominantes (49,9%). E, como nos anos anteriores, a sensação de falta de futuro ainda pesava sobre o argentino.
A artista plástica Sonia Saluzzi, 73, mostra uma pintura sua para expressar o que sente pelo país.
"Assim vejo a Argentina. Essas árvores estão se extinguindo no sul. Venho de uma época em que se encontrava trabalho em qualquer parte. Hoje meus filhos estão travados, não podem seguir em frente, tenho muita raiva", disse.
"Hoje os jovens não podem fazer projetos porque não têm estabilidade. Não há projetos, todos foram se deteriorando e criando um estado de desencontro," lamenta Hugo.
A filha concorda: "O futuro tem a ver com o que se faz no presente. Imagino um futuro exatamente como agora, com todas as lutas, todos os labirintos que a gente percorre para buscar esperança".
"Isso se chama consciência da enfermidade e é bom. É a vergonha de ter sido e a dor de já não ser", explicou o psicanalista Alfredo Grande. "Justamente tem que se chegar a isso, depois que o país foi quebrado. A situação em algumas comunidades é pior que o pior pós-guerra. Há comunidades que ficaram isoladas, como depois de um bombardeio. É preciso incomodar-se, mas não escandalizar-se. Depois o que fazer com isso é outra questão", disse.



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