São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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MUNDO ANIMAL

Crescimento do "turismo natural" pode afetar a vida silvestre

Ecoturismo e animais nem sempre se dão muito bem

Alberto Lowe - 3.jul.2003/Reuters
Ecoturistas andam de teleférico em floresta tropical no Panamá


CHARLES ARTHUR
DO ""INDEPENDENT"

O silêncio é enervante. A leoa está prestes a saltar sobre sua presa, em meio à poeirenta savana africana. Ela lança o ataque. Uma luta rápida, uma mordida, e o antílope cai morto. O que se ouve a seguir é um som inesperado: walkie-talkies transmitindo e recebendo mensagens urgentes, vários jipes sendo ligados, enquanto mais um grupo de turistas é levado ao local do abate para assistir, de olhos arregalados, à vida como ela é.
Para a leoa espantada, o clicar das câmeras e a visão dos "animais" metálicos, do tamanho de rinocerontes, é apenas uma coisa a mais com a qual ela precisa lidar -mesmo quando está comendo, ou especialmente quando o está.
Hoje em dia, muitas empresas não hesitam em qualificar uma viagem desse tipo como ""ecoturismo". "Esse é o pior tipo de ecoturismo que existe", disse Nigel Dunstone, professor de zoologia na Universidade de Durham, que, desde 1985, pesquisa os efeitos do ecoturismo sobre as espécies animais. "O problema é que o ecoturismo tornou-se uma categoria grande demais."

Negócio em expansão
O ecoturismo é um negócio grande, ou mesmo enorme, envolvendo até 20% dos turistas do mundo. Isso não seria problema, não fosse pelo fato de que, segundo descobriram cientistas, acima de determinado nível, o ecoturismo e os animais não se dão bem.
Um artigo publicado na revista ""New Scientist" esta semana cita uma série de casos e fala do crescente receio entre os especialistas em função da maneira como o ""turismo de natureza" está prejudicando as próprias espécies que, supostamente, deveria ajudar.
Os animais silvestres podem contaminar-se com doenças humanas. Lama e sujeira vindas de roupas e veículos, além do material de esgoto gerado por todo turista, podem transmitir patógenos capazes de contaminar espécies nativas.
Na África oriental, após a chegada do turismo em massa, gorilas passaram a ser contagiados por parasitas intestinais. Em Botsuana (sul da África), mangustos contraíram turberculose humana; a doença matou um grupo inteiro de suricates no deserto do Kalahari.
Na Antártida, um local inabitado especialmente puro e intocado, o risco de doenças humanas serem transmitidas a uma fauna nativa que, em essência, vive isolada dos germes do resto do mundo, é uma preocupação grande.
E é possível que isso já ocorra: milhares de animais vêm morrendo, entre eles filhotes de pingüins Adelie, leões-marinhos e focas, embora nenhuma causa possível tenha sido isolada até agora.
""Precisamos ser vigilantes. Temos de limitar a possibilidade de a atividade humana introduzir doenças entre a fauna da Antártida", disse à "New Scientist" o cientista Knowles Kerry, da divisão australiana na Antártida.
Mesmo quando não estão transmitindo doenças, os ecoturistas podem atrapalhar os animais com sua simples presença.
Rochelle Constantine, da Universidade de Auckland (Nova Zelândia), desde 1996 lidera uma equipe que monitora as ações de uma espécie de golfinho.
Num artigo a ser publicado no periódico ""Biological Conservation", ela conta que os golfinhos ficam ""mais e mais frenéticos" quando há embarcações de turistas presentes. Quando há três ou mais embarcações nas redondezas, os animais às vezes descansam por 0,5% de seu tempo, contra 68% do tempo quando há um só barco de pesquisadores.
Como observa a "New Scientist", a lista continua. Na Austrália, quase 350 mil turistas visitam a ilha Frasier, ao largo da costa de Queensland, todos os anos, na esperança de ver os dingos, animais selvagens nativos semelhantes a cães. Em abril de 2001, dois dingos atacaram e mataram um menino de 9 anos. As autoridades sacrificaram 31 animais para reduzir as chances de ocorrerem outros ataques.

Efeito sobre a reprodução
Segundo Constantine, os efeitos do ecoturismo sobre a reprodução animal podem levar anos para se manifestar, e, até então, podem ter se tornado irreversíveis.
O estudo de doutorado da cientista, que relata o efeito das viagens de barco em que os turistas são convidados a "nadar com os golfinhos", sugere que menos de 20% dos golfinhos querem tomar parte, e que, na realidade, pode ser prejudicial para uma mãe golfinho e seu filhote ter um humano pulando na água em busca de uma experiência que sirva de clímax para sua viagem de férias de milhares de dólares.
A verdade, porém, é que o ecoturismo não vai desaparecer. Muito pelo contrário: a Conservation International, organização com sede em Washington, estima que o ""turismo de natureza", a forma geral da qual o ecoturismo representa uma subcategoria, está aumentando em entre 10% e 30% ao ano, contra apenas 4% a 5% no caso do turismo mais geral.
Calcula-se que um em cada cinco turistas no mundo faz ecoturismo. A ONU declarou 2002 o Ano Internacional do Ecoturismo. Mas poderia ter feito o mesmo com todos os anos deste século, sem medo de errar.
Apesar disso, Dunstone acha que o ecoturismo, corretamente feito, é uma idéia ótima. "Significa, no mínimo, que as pessoas estão injetando dinheiro na economia local, estão vindo para ver os animais, em vez de caçar e comê-los", ele explicou.
"Sou totalmente a favor, desde que seja feito sob condições controladas. O ecoturismo funciona melhor quando é do tipo de preço alto. Houve uma época em que o Belize proibiu a vinda de mochileiros, porque queria turistas com condições de gastar muito. Achei que foi uma medida inteligente -garantiu uma boa fonte de renda para a população local."
As vantagens do ecoturismo para as comunidades locais não podem ser subestimadas. "A frase" "caçador ilegal que virou guarda-caça" é exata: os melhores guias são pessoas que eram caçadores ilegais e que agora mostram aos turistas onde devem ir para ver os animais", disse Dunstone.
Mas existe outra maneira de se fazer tanto ecoturismo quanto se quiser e, ao mesmo tempo, aumentar o cabedal de conhecimentos relativos aos animais. Essa maneira se chama pesquisa científica. ""É verdade -e você ainda é pago para isso", brincou Dunstone. "Mas não vá espalhar por aí". Não queremos que todo o mundo fique sabendo."

Tradução de Clara Allain


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