São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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ARTIGO

O escritor Salman Rushdie prega a participação ativa de educadores e líderes islâmicos na destruição do mito do Grande Satã

Vozes islâmicas têm de se opor a terror

SALMAN RUSHDIE


Enquanto os líderes da Al Qaeda evitam ser capturados, se reagrupam e retornam ao ar em transmissão da emissora de TV Al Jazeera, do Qatar, difundindo ameaças e escárnio, os Estados Unidos estão cada vez mais parecendo um gigante cego, debatendo-se violentamente, mas em vão -como, na realidade, o ciclope cego Polifemo, da lenda homérica, que só tinha um olho mesmo, para começar, e teve esse único olho trespassado por Ulisses e seus companheiros fugitivos, sendo reduzido a ficar urrando em fúria impotente, atirando pedras enormes na direção aproximada da voz atormentadora de Ulisses.
De fato, Osama bin Laden, aquele que ainda estaria vivo, talvez achasse útil a história de Ulisses e Polifemo como alegoria de sua própria batalha contra o Grande Satã da América (afinal, Polifemo é uma espécie de superpotência maligna: uma criatura estúpida, dotada de grande força bruta, que não respeita leis ou deuses e devora carne humana. Enquanto isso, Ulisses é astuto, malandro, fugidio, perigoso e impossível de ser capturado).
Mas talvez não gostasse dela, já que, pelo fato de ter ferido Polifemo, Ulisses despertou a ira do pai dos ciclopes, Possêidon, o deus do mar, governante do destino de todos os fugitivos e viajantes, e foi fadado a nunca mais voltar para casa até ter perdido todos seus homens e até sua casa ter se transformado em qualquer coisa, menos um lar aconchegante.
Seja como for, as alegorias não nos levam além de determinado ponto, e duvido que Bin Laden passe muito tempo analisando o livro nove da "Odisséia".
Um dos aspectos mais preocupantes de nossos tempos sempre preocupantes é até que ponto os cidadãos comuns do mundo muçulmano se dispõem a aceitar o retrato pintado pela gangue de Osama bin Laden de uma América, mais especificamente, e do Ocidente e de "os judeus", de modo geral, como sendo monstruosos.
Isso, apesar do esforço conjunto feito no Ocidente de combater o correspondente a esse tipo de satanização. Nos Estados Unidos, desde 11 de setembro, e também na Europa, alarmada com o ressurgimento da extrema direita, foram e continuam a ser feitos esforços elogiáveis para impedir que todos os muçulmanos sejam retratados do mesmo modo, como terroristas.
Vozes muçulmanas -as vozes de pessoas nas ruas árabes, afegãs, paquistanesas ou caxemirianas, além dos intelectuais e políticos- estão ganhando tempo e espaço na mídia e estão sendo ouvidas.
Um exemplo recente disso foi a decisão do jornal britânico "The Guardian" de passar uma semana inteira dando destaque à chamada "islamofobia".
A maioria das vozes que temos ouvido têm dito coisas extremamente duras a respeito dos Estados Unidos, sua arrogância, brutalidade, ignorância e assim por diante.
É difícil não sentir que, mesmo nas mais civilizadas dessas vozes, existe menos paixão pela batalha contra o terrorismo do que pela polêmica da vitimização pelo ciclope americano.
É difícil não ouvir, na condenação ampla e irrestrita feita do individualismo ocidental hedonista, sibarita e obcecado com o sexo, ecos mais fracos do puritanismo fanático dos extremistas islâmicos.
É difícil não ouvir, por baixo das condenações de praxe do sofrimento americano às mãos dos assassinos de 11 de setembro, um toque de prazer sádico diante do sofrimento alheio. É difícil ignorar a admiração frequentemente expressa pelo êxito dos terroristas em acertar um soco no nariz da América.
É difícil, também, esquecer a pesquisa do instituto de pesquisa Gallup, conduzida em todo o mundo muçulmano alguns meses atrás, na qual os entrevistados, em sua grande maioria, negaram a responsabilidade muçulmana pelos atentados de 11 de setembro.
Alguns de nós temos ficado atentos para tentar captar outra coisa: o surgimento de uma polêmica muçulmana real contra o mal que os terroristas estão fazendo a "seu próprio povo".
Pois a guerra contra o terror islâmico só será ganha quando muçulmanos em todo o mundo começarem a se dar conta de que o fanatismo é um mal maior do que aquele que eles acreditam que seja incorporado pelos Estados Unidos -um mal, ademais, que é mais danoso do que este aos muçulmanos de todo o mundo, mais destrutivo em termos sociais, econômicos e políticos, e possuído pela visão assustadora da "talebanização" do planeta.
Após nove meses durante os quais foi enfatizado repetidas vezes que a maioria dos muçulmanos não é formada por terroristas, mas sim por seres humanos normais e decentes, seria bom poder apontar para o surgimento de um movimento muçulmano internacional contra o terrorismo.
Infelizmente, porém, nenhum movimento desse tipo surgiu. E nem existe o menor indicativo de que ainda o vá fazer.
É verdade que, em alguns momentos, a impressão que se teve é a de que o governo americano estava se esforçando ao máximo para justificar ser comparado ao ciclope cegado -só que o Polifemo, nessa comparação, é um gigante cuja cegueira foi, em grande medida, auto-infligida. A litania dos erros dos serviços de informação antes de 11 de setembro já foi repetida muitas vezes: os relatórios arquivados, os avisos que ficaram sem traduzir, a pura e simples burrice da burocracia americana.
Sabemos, agora, que muitos membros importantes do gabinete de Bush estavam ocupados tentando impedir a alocação de verbas ao trabalho de inteligência, até o momento dos ataques. E sabemos que, apesar de todos os recursos dos EUA terem sido postos para trabalhar, ninguém, até agora, conseguiu localizar o esconderijo de seu maior inimigo.
É difícil deixar de refletir que usar o termo "inteligência", nesse contexto, é enganoso: "desinteligência" talvez fosse mais exato, ou até mesmo "burrice".
As autoridades americanas alegam que esse período de cegueira já terminou, que muitas outras conspirações já foram frustradas, várias ameaças, identificadas e algumas prisões feitas (se bem que, como foi o caso do execrável José Padilla, foram feitas com base nas provas mais insubstanciais imagináveis).
O tempo dirá quem está com a razão, o assustador Sulaiman Abu Ghaith, da rede Al Qaeda, ou o governo americano. Ninguém que eu conheço sente certeza quanto ao resultado do embate.
Os EUA podem, de fato, se parecer muito com um gigante enorme, feio e desajeitado. A política americana com relação ao Oriente Médio, por exemplo, é, neste momento, a maior arma isolada de propaganda política dos terroristas, e a nova linha dura adotada por Bush não foi traçada exatamente pensando em mudar tudo isso.
Mas se de fato a maioria dos mais de 1 bilhão de muçulmanos que vive no mundo nada tem a ver com o terrorismo, como nos vem sendo dito constantemente, então é hora de seus líderes, seus educadores, sua imprensa e sua intelligentsia deixarem de criar as condições prévias que dão espaço a esse terrorismo, deixando de perpetuar a imagem de uma América satânica, polifêmica, que merece ser destruída.


Salman Rushdie, 54, escritor britânico de origem indiana, é autor de "Os Versos Satânicos", "O Último Suspiro do Mouro", "O Chão Que Ela Pisa" e "Fury" (ainda sem título em português), entre outros livros

Tradução de Clara Allain


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