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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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AMÉRICA LATINA

Trinta anos depois, ex-asilados relatam histórias, como a do sargento que sobreviveu a fuzilamento pulando em rio

Brasileiros lembram horror do golpe chileno

CHICO DE GOIS
DA REPORTAGEM LOCAL

O rio Mapocho, que corta Santiago do Chile de leste a oeste, estendendo-se por 30 quilômetros, ficou vermelho em 11 de setembro de 1973 e nos dias imediatamente posteriores. As cenas de horror histórico, descritas por brasileiros refugiados no país do socialista Salvador Allende, chocam até hoje por serem reais.
A agonia dos simpatizantes de Allende começou pela manhã, quando os caças Hawker Hunter bombardearam o Palácio de La Moneda, onde o presidente e alguns apoiadores tentavam resistir. À tarde, o presidente, percebendo que não tinha escapatória, suicidou-se.
O golpe, liderado pelo general Augusto Pinochet, que em 23 de agosto assumira a chefia do Exército sob as bênçãos do próprio Allende, causou a morte ou o desaparecimento de pelo menos 4.000 pessoas.
Oficialmente, quatro brasileiros foram mortos pela ditadura chilena -Luiz Carlos Almeida, por exemplo, foi fuzilado sobre uma das pontes do rio Mapucho -e mais um está desaparecido -Nelson de Souza Kohl, preso em 15 de setembro de 1973 pela Força Aérea Chilena.
"Foi um dos episódios mais aterrorizantes da minha vida", relembra Alfredo Sirkis, antigo militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), hoje secretário municipal de Urbanismo do Rio de Janeiro.
Sirkis conta que estava na casa de um amigo naquela manhã e acompanhou pela rádio Magallanes as informações sobre o golpe. O narrador dos eventos era o próprio Allende.
"Com o golpe, havia uma campanha contra os estrangeiros", disse Sirkis à Folha. "A sociedade estava muito dividida e a classe média denunciava quem não fosse chileno." As memórias de Sirkis sobre o golpe estão no livro "Roleta Chilena".
O deputado estadual do Rio de Janeiro Carlos Minc (PT) também viveu momentos de tensão em Santiago. "Eu vi corpos boiando no Mapocho", contou. Detido na tarde do golpe, ele disse que ouviu oficiais falarem claramente para matar qualquer um que se mexesse. "Eu fazia estágio e inventei uma história qualquer. Dei sorte e eles me soltaram."
De acordo com o deputado, aviões lançavam panfletos pedindo à população que denunciasse os estrangeiros. "Eu poderia estar morto."
Essa mesma sensação tem o ex-sargento José Araújo Nóbrega. Exilado no Chile desde que Allende venceu as eleições, em 4 de setembro de 1970, Nóbrega trabalhava no Serviço de Cooperação Técnica do Chile, um organismo estatal de assistência técnica para a pequena indústria. No dia do golpe, ele lembra que subiu no telhado da repartição onde trabalhava e presenciou o bombardeio ao La Moneda.
Nóbrega foi preso três dias depois do golpe e, encaminhado ao Estádio Nacional, foi submetido a torturas.
Na madrugada do dia 15, ele e mais um grupo de quatro presos foram colocados em um ônibus sem bancos e levados à beira do rio Maipo. "Estávamos amarrados com as mãos para trás", descreve Nóbrega. Os carabineiros os soltaram e devolveram seu passaporte e os dos demais. "Foi aí que percebi que a intenção deles era nos matar pelas costas, forjando uma situação para dizer que tentamos fugir."
Nóbrega, então, saltou em direção de um carabineiro e atracou-se com ele. Na confusão, quando preparava-se para fugir, foi atingido por um tiro no pé e outro trespassou sua camiseta, sem, contudo, acertá-lo.
Ele saltou no rio Maipo e agarrou-se a um galho de árvore. Os carabineiros pensaram que tinha morrido. "Quando percebi que o ônibus havia partido, saí. Ainda ouvi alguns dos presos gemendo, mas não dava para fazer nada."
Nóbrega conseguiu refúgio na casa do cônsul dinamarquês. À noite, porém, a polícia fez uma vistoria no local e ele teve de permanecer escondido no depósito de milho, entre porcos. De lá, foi para uma casa que passou a ser a Embaixada de Honduras, onde partiu depois para Suécia.

Infiltração
As atividades políticas dos brasileiros que estavam no Chile eram monitoradas pelo extinto SNI (Serviço Nacional de Informação). Nóbrega lembra que, quando estava preso no Estádio Nacional, ouviu uma pessoa falando em "portunhol" com oficiais que faziam os interrogatórios. "Logo depois do golpe, o serviço de repressão brasileiro já estava no Chile."
Para o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, "os serviços de informação do governo haviam se infiltrado entre os brasileiros antes mesmo do golpe". Para reforçar sua tese, ele exibe alguns documentos. Um deles é da Superintendência dos Serviços Policiais, datado de 27 de novembro de 1972.
O documento é um mandado de busca contra James Alem da Luz, "atualmente foragido no Chile, que deverá retornar ao Brasil passando antes pelo Uruguai".


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