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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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Império cria "franquias"

NAOMI KLEIN

O Hotel Marriott em Jacarta ainda estava em chamas quando Susilo Bambang Yudhoyono, ministro de Assuntos Políticos e de Segurança da Indonésia, começou a expor as implicações do ataque. "Aqueles que criticam as violações de direitos humanos precisam compreender que as vítimas de atentados são mais importantes do que qualquer questão de direitos humanos".
Em uma sentença, temos o melhor resumo oferecido até agora para a filosofia que embasa a chamada "guerra ao terrorismo" de Bush. O terrorismo não se limita a detonar edifícios; suas bombas também explodem todas as outras questões do mapa político. O espectro do terrorismo -real e exagerado- se tornou um escudo de impunidade, protegendo os governos contra a fiscalização de seus abusos.
Muitos argumentaram que a guerra contra o terrorismo é a desculpa esfarrapada do governo Bush para construir um império clássico, no modelo do romano ou do britânico. Dois anos depois de iniciada a cruzada, fica claro que isso é um erro. A gangue de Bush não dispõe da persistência compulsiva necessária para ocupar sequer um país, quanto mais uma dúzia deles.
Mas Bush e sua gangue têm, no entanto, o entusiasmo dos bons profissionais de marketing e sabem como terceirizar contratos. O que Bush criou, em sua guerra contra o terrorismo, é menos uma doutrina para a dominação mundial do que um kit de ferramentas para um projeto de montagem fácil, disponível para qualquer miniimpério que deseje se livrar da oposição e ampliar seu poder.
A guerra contra o terrorismo jamais foi uma guerra no sentido tradicional. Faltava-lhe um alvo claro. Trata-se, na verdade, de uma espécie de marca -uma idéia que pode ser franqueada com facilidade para qualquer governo que esteja no mercado à procura de um eliminador genérico de forças de oposição.
Já sabemos que a guerra contra o terrorismo funciona contra os grupos internos que empregam táticas terroristas, como o Hamas ou as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Mas essa é apenas sua aplicação mais básica. A guerra ao terror pode ser empregada contra qualquer movimento de libertação ou oposição, contra imigrantes, ativistas dos direitos humanos e jornalistas.
O premiê israelense, Ariel Sharon, foi o primeiro a adotar a franquia oferecida por Bush, papagaiando as promessas da Casa Branca de "arrancar pela raiz essas ervas daninhas e esmagar sua infra-estrutura". Não demorou muito para que a "infra-estrutura do terrorismo" passasse a incluir observadores dos direitos humanos que testemunharam ataques, grupos assistenciais e jornalistas.
Outra franquia foi aberta logo em seguida na Espanha, onde o premiê José María Aznar estendeu sua guerra contra terrorismo do grupo basco ETA ao movimento separatista basco como um todo, apesar de este ser, em sua maioria, inteiramente pacífico. Aznar se negou a negociar com o governo autônomo do País Basco e baniu o Batasuna, um partido político legítimo, embora não se tenha estabelecido conexão direta entre ele e o terror.
Essa parece ser a verdadeira mensagem da franquia antiterrorista de Bush. Por que negociar com seus oponentes políticos quando se pode aniquilá-los?


A guerra ao terror diz: para que negociar com a oposição se se pode aniquilá-la?


A presidente Megawati Sukarnoputri, da Indonésia, recebeu o mesmo memorando. Ela assumiu o poder prometendo reformar suas Forças Armadas, notoriamente corruptas e brutais, e levar a paz ao seu faccioso país. Mas, em lugar disso, suspendeu as negociações com o Movimento pelo Aceh Livre e, em maio, invadiu aquela Província rica em petróleo, a maior ofensiva militar empreendida pela Indonésia desde a invasão de Timor Leste em 1975.
Depois do 11 de Setembro, o governo passou a retratar o movimento pela liberação nacional de Aceh como "terrorista", o que quer dizer que as preocupações com os direitos humanos já não se aplicam a ele. Um dos principais assessores de Megawati classificou a mudança como "uma benção do 11 de Setembro".
A presidente filipina, Gloria Macapagal Arroyo, parece se ter sentido igualmente abençoada. Retratando sua batalha contra os separatistas muçulmanos no sul da ilha de Moro como parte da guerra contra o terror, Arroyo abandonou as conversações de paz e passou a travar uma guerra civil brutal em lugar disso, criando 90 mil refugiados em 2002.
Às vezes, a guerra contra o terrorismo é desculpa para continuar uma guerra já iniciada. O presidente Vicente Fox, do México, chegou ao poder em 2000 prometendo resolver o conflito com os zapatistas "em 15 minutos" e enfrentar os abusos descontrolados dos direitos humanos praticados pelos militares e pela polícia. Depois do 11 de Setembro, Fox abandonou ambos os projetos. O governo não agiu para reiniciar o diálogo com os zapatistas e, na semana passada, eliminou a subsecretaria de Direitos Humanos.
É essa a era pressagiada pelo 11 de Setembro: guerra e repressão desfechadas não por um único império, mas por uma cadeia mundial de franquias imperiais.
Na semana passada, uma outra guerra ocupou as manchetes. Na Argentina, o Congresso revogou leis que deixavam impunes criminosos sádicos da ditadura que governou o país entre 1976 e 1983. Na época, os generais classificavam sua campanha de extermínio como "guerra contra o terror" e usaram uma série de sequestros e ataques violentos praticados por grupos esquerdistas como desculpa para assumir o poder.
Mas a vasta maioria dos 30 mil "desaparecidos" nos anos da ditadura não era terrorista. Tratava-se de líderes sindicais, artistas, professores, psiquiatras. Como acontece em todas as guerras contra o terrorismo, não é o terror que é o alvo. Ele simplesmente fornece uma desculpa conveniente para que a verdadeira guerra seja travada, a guerra contra as pessoas que ousam dissentir.


A jornalista canadense Naomi Klein, 33, é autora do livro "Sem Logo - A Tirania das Marcas em um Planeta Vendido"


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