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ARTIGO
Democracia nas Américas
ROGER COHEN
DO "NEW YORK TIMES", EM CARACAS
Hugo Chávez, eu o saúdo.
São palavras que jamais imaginei escrever. Mas eu tampouco imaginava que um homem
forte latino-americano vindo
dos quartéis, que acumulou poder por meio de ameaças e difamação de oponentes a quem
classifica como "traidores",
compra apoio popular com os
US$ 150 milhões que o governo
recebe ao dia em receita petroleira e se declara determinado a
promover uma revolução socialista, viria a aceitar uma derrota eleitoral, ainda mais por
tão pequena margem.
Não: caso a situação viesse a
envolver a humilhante rejeição, por 51% a 49%, de suas
propostas para pôr fim aos limites de reeleição presidencial,
reduzir os direitos de propriedade privada e centralizar a autoridade, ele usaria a Comissão
Eleitoral que está sob controle
do governo a fim de adulterar
os números e permitir o prosseguimento da gloriosa marcha
da Venezuela ao socialismo.
No entanto lá estava Chávez,
com uma expressão sombria,
declarando, em linguagem simples que jamais seria admitida
por um sistema totalitário, que
"a decisão do povo será mantida, em respeito à regra básica
da democracia". "A opção vencedora é a que tem mais votos."
Os norte-americanos poderiam ponderar essas palavras
-não só pelo que aconteceu na
eleição presidencial de 2000;
não porque a aritmética do voto se provou impalatável na Palestina; não apenas devido ao
apoio dos EUA à derrubada de
líderes latino-americanos eleitos. Mas porque a democracia
estava viva e forte no domingo,
na Venezuela, de um jeito que
não se vê nos EUA de Bush.
Eu observei "chavistas" e
seus oponentes discutirem
suas diferenças sob o sol. A
questão em disputa era grave,
mas a civilidade prevalecia.
Quando saiu o resultado, partidários do "não" festejaram sem
problemas pelas ruas.
As credenciais democráticas
venezuelanas são robustas, para a América Latina -o país vive sob democracia desde
1958-, mas parecem um tanto
pálidas, pelos padrões norte-americanos. No entanto o envolvimento direto, a responsabilidade cívica e o senso de propósito exibidos pelos venezuelanos faziam com que os movimentos iniciais da campanha
eleitoral norte-americana parecessem dignos de pena.
Os EUA precisam de um novo começo. Não podem viver na
alternância entre as dinastias
Clinton e Bush, tampouco no
machismo militarista dos republicanos que parecem prever
guerras sem fim. A solução precisa envolver uma face nova,
que reconcilie o país consigo e
com o mundo, supere divisões e
fale com honestidade da glória
e vergonha norte-americanas.
Por falar em vergonha norte-americana, apanhei-me recordando das cenas terríveis que
presenciei em Santiago em
1986, quando outro homem
forte, este sim um verdadeiro
ditador, o general Augusto Pinochet, respondia com selvageria a uma tentativa de assassinato. Três mil chilenos pereceram [sob seu governo]. Na Argentina, mais de 20 mil pessoas
desapareceram. Esses crimes
envolveram cumplicidade norte-americana. A fúria de Chávez contra os ianques, sutil como uma britadeira, não deixa
de ecoar na América Latina.
Capítulos sombrios como esses jamais foram reconhecidos
com franqueza suficiente por
um líder norte-americano.
Chegou a hora. Talvez um presidente de uma nova geração
seja capaz de fazê-lo.
As Américas hoje se tornaram um lugar melhor. A abertura cumpriu sua missão. A
chamada revolução de Chávez
e os demais movimentos esquerdistas regionais refletem
disparidades sociais duradouras, mas a vigorosa democracia
venezuelana demonstra a dimensão dos avanços.
Sejamos claros: Chávez é um
caudilho. Uma ameaça. Está
para introduzir uma nova moeda, e na política monetária do
país impera o caos, com inflação alta e seus cupinchas nos
bancos embolsando milhões
com a lacuna entre cotação oficial e câmbio negro. O crime e o
narcotráfico prosperam. Ele
continua a crer na construção
do socialismo por meio de conselhos locais -o que, em russo,
seria um "soviete". Acusou a
oposição de ter uma "vitória de
Pirro" e prometeu não mudar
nem "uma vírgula" em sua proposta rejeitada de reforma.
Mas o fato de ter honrado as
frágeis maravilhas da democracia continua a torná-lo digno de
uma saudação. Acima de tudo,
porém, eu saúdo o povo venezuelano. Chávez disse antes do
referendo que votar "não" queria dizer votar em Bush. Os venezuelanos não se incomodaram e votaram de acordo com
suas consciências. Deram um
exemplo de civismo que a combalida e queixosa democracia
de Bush bem poderia seguir.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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