São Paulo, sexta-feira, 07 de dezembro de 2007

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ARTIGO

Democracia nas Américas

ROGER COHEN
DO "NEW YORK TIMES", EM CARACAS

Hugo Chávez, eu o saúdo. São palavras que jamais imaginei escrever. Mas eu tampouco imaginava que um homem forte latino-americano vindo dos quartéis, que acumulou poder por meio de ameaças e difamação de oponentes a quem classifica como "traidores", compra apoio popular com os US$ 150 milhões que o governo recebe ao dia em receita petroleira e se declara determinado a promover uma revolução socialista, viria a aceitar uma derrota eleitoral, ainda mais por tão pequena margem.
Não: caso a situação viesse a envolver a humilhante rejeição, por 51% a 49%, de suas propostas para pôr fim aos limites de reeleição presidencial, reduzir os direitos de propriedade privada e centralizar a autoridade, ele usaria a Comissão Eleitoral que está sob controle do governo a fim de adulterar os números e permitir o prosseguimento da gloriosa marcha da Venezuela ao socialismo.
No entanto lá estava Chávez, com uma expressão sombria, declarando, em linguagem simples que jamais seria admitida por um sistema totalitário, que "a decisão do povo será mantida, em respeito à regra básica da democracia". "A opção vencedora é a que tem mais votos."
Os norte-americanos poderiam ponderar essas palavras -não só pelo que aconteceu na eleição presidencial de 2000; não porque a aritmética do voto se provou impalatável na Palestina; não apenas devido ao apoio dos EUA à derrubada de líderes latino-americanos eleitos. Mas porque a democracia estava viva e forte no domingo, na Venezuela, de um jeito que não se vê nos EUA de Bush.
Eu observei "chavistas" e seus oponentes discutirem suas diferenças sob o sol. A questão em disputa era grave, mas a civilidade prevalecia. Quando saiu o resultado, partidários do "não" festejaram sem problemas pelas ruas.
As credenciais democráticas venezuelanas são robustas, para a América Latina -o país vive sob democracia desde 1958-, mas parecem um tanto pálidas, pelos padrões norte-americanos. No entanto o envolvimento direto, a responsabilidade cívica e o senso de propósito exibidos pelos venezuelanos faziam com que os movimentos iniciais da campanha eleitoral norte-americana parecessem dignos de pena.
Os EUA precisam de um novo começo. Não podem viver na alternância entre as dinastias Clinton e Bush, tampouco no machismo militarista dos republicanos que parecem prever guerras sem fim. A solução precisa envolver uma face nova, que reconcilie o país consigo e com o mundo, supere divisões e fale com honestidade da glória e vergonha norte-americanas.
Por falar em vergonha norte-americana, apanhei-me recordando das cenas terríveis que presenciei em Santiago em 1986, quando outro homem forte, este sim um verdadeiro ditador, o general Augusto Pinochet, respondia com selvageria a uma tentativa de assassinato. Três mil chilenos pereceram [sob seu governo]. Na Argentina, mais de 20 mil pessoas desapareceram. Esses crimes envolveram cumplicidade norte-americana. A fúria de Chávez contra os ianques, sutil como uma britadeira, não deixa de ecoar na América Latina.
Capítulos sombrios como esses jamais foram reconhecidos com franqueza suficiente por um líder norte-americano. Chegou a hora. Talvez um presidente de uma nova geração seja capaz de fazê-lo. As Américas hoje se tornaram um lugar melhor. A abertura cumpriu sua missão. A chamada revolução de Chávez e os demais movimentos esquerdistas regionais refletem disparidades sociais duradouras, mas a vigorosa democracia venezuelana demonstra a dimensão dos avanços.
Sejamos claros: Chávez é um caudilho. Uma ameaça. Está para introduzir uma nova moeda, e na política monetária do país impera o caos, com inflação alta e seus cupinchas nos bancos embolsando milhões com a lacuna entre cotação oficial e câmbio negro. O crime e o narcotráfico prosperam. Ele continua a crer na construção do socialismo por meio de conselhos locais -o que, em russo, seria um "soviete". Acusou a oposição de ter uma "vitória de Pirro" e prometeu não mudar nem "uma vírgula" em sua proposta rejeitada de reforma.
Mas o fato de ter honrado as frágeis maravilhas da democracia continua a torná-lo digno de uma saudação. Acima de tudo, porém, eu saúdo o povo venezuelano. Chávez disse antes do referendo que votar "não" queria dizer votar em Bush. Os venezuelanos não se incomodaram e votaram de acordo com suas consciências. Deram um exemplo de civismo que a combalida e queixosa democracia de Bush bem poderia seguir.


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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