São Paulo, sábado, 08 de maio de 2010

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OPINIÃO

Cameron precisa dividir poder para garantir legitimidade

As duas mais poderosas correntes que se pôde perceber na campanha foram o desejo de mudança e um desencanto palpável com a classe política britânica

Lefteris Pitarakis/Reuters
O líder do Partido Conservador britânico, David Cameron, chega a um clube no centro de Londres, onde falou ontem à tarde à imprensa

PHILIP STEPHENS
DO "FINANCIAL TIMES"

NÃO HAVIA um item na cédula para que os eleitores pudessem marcar sua rejeição ao governo de Gordon Brown e apoio não muito entusiástico a David Cameron. O sistema britânico não funciona assim.
Os premiês costumam ser eleitos por maiorias claras. Basta recordar o exemplo de Margaret Thatcher ou Tony Blair. Foi essa a tradição dilacerada pela extraordinária eleição britânica desta semana.
Em uma exibição quase sobrenatural de intuição coletiva, as escolhas individuais de milhões de eleitores se combinaram para alinhar perfeitamente a aritmética parlamentar à zangada ambivalência dos britânicos. Cameron fez o suficiente para garantir a chefia de governo, consideraram os eleitores, mas não o bastante para receber carta branca.
Por mais que Cameron possa alegar, com justiça, que os conservadores conquistaram novos assentos (quase cem) em número que não se via desde a década de 30, os aplausos foram claramente contidos. Essa opção dos eleitores por um tipo diferente de política pode acabar em lágrimas e bem provavelmente em nova eleição geral dentro de um ano.
As imagens de tumultos e coquetéis molotov em Atenas e a confusão dos mercados financeiros servem como assustador lembrete daquilo que pode acontecer quando um governo não se prova capaz de enfrentar desafios econômicos sérios.
O Reino Unido está em forma muito melhor que a da Grécia. Isso não equivale a dizer que esteja em boa forma. Um deficit orçamentário anual da ordem de 11% do Produto Interno Bruto não dá ao novo governo muito tempo para indecisão.
Os mercados deram ao Reino Unido o benefício da dúvida, na expectativa de que o novo governo comece rapidamente a reparar o rombo nas finanças públicas. A paciência dos investidores não é inexaurível.

Mensagem
As duas mais poderosas correntes que se pôde perceber na campanha foram o desejo de mudança e um desencanto palpável com a classe política. As duas se combinaram para produzir um resultado inconcluso. Isso requer dos políticos do país algo a que não estão acostumados: uma percepção do interesse nacional que vá além do esforço reflexo para conquistar as benesses de um cargo.
Se há uma mensagem simples a extrair do resultado de 650 disputas eleitorais separadas, em distritos espalhados por todo o país, ela se dirige a todos os participantes: tratem de amadurecer.
Outro boom econômico transformado em contração, o abuso das verbas de gabinete e a promessa de muitos anos de austeridade fizeram com que o eleitorado perdesse a fé na rotação automática do poder.
Cameron reconheceu o fato em sua oferta pós-eleitoral aos liberais-democratas de Nick Clegg, convidando-os a um acordo que produza maioria parlamentar estável.
O país, reconheceu Cameron, votou em uma nova abordagem quanto à política. E ele estava pronto a negociar. Isso posto, sua oferta inicial a Clegg quanto à substância do acordo parece destinada a ser rejeitada pelos liberais-democratas. Em outra das extraordinárias reviravoltas da eleição, Clegg terminou surpreendentemente derrotado. Todo mundo sabia que o governo de Brown estava cambaleando.
Depois do forte desempenho de Clegg nos debates na TV, a suposição era a de que os liberais-democratas dividiriam os ganhos com os conservadores. Nas urnas, o partido de Clegg ficou com 23% dos votos e conquistou apenas 57 assentos, menos de 10% do total de 650 postos da Câmara dos Comuns: uma prova da inerente injustiça do sistema eleitoral.
No entanto, Clegg tem algumas cartas a jogar. Cameron precisa ao menos da aquiescência dos liberais-democratas se pretende formar um governo minimamente estável.

Acordo duradouro
A negociação entre os dois partidos deve continuar ao longo do fim de semana. Enquanto isso, Brown permanecerá na chefia do governo, esperançoso de que Clegg rejeite os conservadores e opte por um acordo com os trabalhistas.
A esperança parece vã, porque a combinação entre as bancadas não daria maioria absoluta no Parlamento. O que o país precisa é de um acordo duradouro entre Cameron e Clegg. O que os mercados temem é uma repetição de 1974, a última ocasião em que uma eleição geral britânica não teve um vencedor claro.
O impasse foi rompido, então, pela decisão de Harold Wilson de convocar novas eleições no mesmo ano. Mas as circunstâncias eram completamente diferentes, não menos porque 30 anos atrás os dois maiores partidos desfrutavam de virtual monopólio sobre o poder. As negociações não serão fáceis. As diferenças entre os dois partidos se refletem nas fortes divisões internas de ambos.
Muitos dos colegas de Clegg se sentiriam mais confortáveis se o acordo fosse com os trabalhistas. Muita gente no partido de Cameron é abertamente hostil a qualquer discussão do compromisso quanto a um referendo sobre reforma eleitoral, que pode ser o preço que Clegg imporá pelo seu apoio.
Alguns liberais-democratas acharão que a participação no gabinete de Cameron é um pré-requisito. Outros afirmarão que o partido não deveria se aproximar mais que o necessário dos conservadores.
Cameron é que sofrerá a maior pressão. Com base naquilo que ele declarou, está pronto a aceitar o veredicto do eleitorado e buscar a legitimidade política essencial que um governo de coalizão ofereceria. Mas convencer seu partido e o país a fazer o mesmo requereria virtudes de estadista que talvez estejam além do alcance de seus 43 anos.
Creio que foi o economista John Kenneth Galbraith que certa vez disse que a política muitas vezes se resume a uma escolha entre o intragável e o desastroso. Essa é uma boa descrição para aquilo que aguarda o futuro premiê britânico.

Leia especial sobre as eleições no Reino Unido

www.folha.com.br/101242



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