São Paulo, terça-feira, 09 de julho de 2002

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Disputa étnica lembra cenário pré-guerra civil

IGOR GIELOW
COORDENADOR DA AGÊNCIA FOLHA

Quando assumiu o poder interino do Afeganistão pela primeira vez, em dezembro, Hamid Karzai prometeu pôr fim à ""lei das armas" no país. O assassinato de Abdul Qadir mostra quão distantes são discurso e realidade.
Mais do que isso, sua morte aproxima o cenário político afegão àquele que gerou a guerra civil em 1992, quando tomou o poder uma coalizão de ""senhores da guerra" de grupos étnicos distintos. Quando uma facção começou a se sentir menos favorecida que outra, estourou o conflito que abriu caminho para o Taleban.
Qadir era o principal representante da etnia pashtu do leste afegão, centrado na Província de Nangarhar e sua capital, Jalalabad. Sua morte vai aumentar as queixas de que há tadjiques e uzbeques étnicos em demasia no governo -num país no qual 40% da população é pashtu. Sobra Karzai, mas sua facção tribal ligada à família real é minoritária.
Qadir tinha um histórico conturbado. Lutou a guerra contra os soviéticos à sombra do irmão, o famoso comandante Abdul Haq.
Em maio de 1996, governando Nangarhar, foi a primeira autoridade a abrigar como ""hóspede" o saudita Osama bin Laden, que vinha do Sudão fugindo da CIA.
Se dava bem também com o chefe do Taleban, mulá Mohamad Omar. Tanto que teria sido ""indenizado" em US$ 10 milhões quando Jalalabad foi ocupada pelo Taleban, em setembro de 96. Refugiou-se em Peshawar (Paquistão) com a família, mas logo teve de exilar-se na Europa.
O 11 de setembro mudou tudo. Com os ataques norte-americanos ao Taleban, Qadir voltou a Peshawar e preparou-se para reocupar Jalalabad. Seu irmão Haq tentou convencer talebans a apoiar os EUA. Foi pego e morto.
As tropas do mulá Omar saíram de Jalalabad no dia 14 de novembro. No dia seguinte, Qadir organizou uma caravana de jornalistas em Peshawar, a Folha inclusa, para voltar à sua cidade.
Cobrando US$ 100 por cabeça, mostrou-se à vontade no papel de ""chefão". Hospedou parte dos repórteres no palácio do governo, quando o único hotel da cidade ficou lotado. Tipicamente, não cedeu um milímetro de informação política relevante.
Na manhã seguinte, uma repórter italiana disse ter seus documentos e US$ 3.000 roubados. Qadir disse para ela não se preocupar porque os documentos seriam achados. ""Quanto ao dinheiro, aqui está", disse, sacando um gordo maço de notas de US$ 100.
Qadir não era querido fora de sua região, e a investigação de sua morte poderá mostrar isso. A versão de que foi morto por traficantes insatisfeitos parece mais servir aos EUA, a quem não interessa mais confusão entre etnias -além de esquecer que Qadir teria feito fortuna com a heroína.
O Afeganistão de 2002 não é o de 1992. Mas é exatamente o fator de diferença, a presença militar dos EUA, que pode determinar a repetição ou não da história.



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