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São Paulo, sexta-feira, 10 de outubro de 2003

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ANÁLISE

EUA transformaram vitória militar em derrota política


O mais espantoso dos 6 meses de ocupação é que ela chegou a provocar saudades de Saddam Hussein em alguns setores


PATRICK COCKBURN
DO "INDEPENDENT", EM BAGDÁ

Seis meses depois da entrada triunfal dos tanques americanos no centro de Bagdá e da célebre cena da derrubada da estátua de Saddam Hussein, os EUA transformaram sua vitória militar no Iraque em derrota política.
Talvez os EUA imaginassem que ontem seria um dia em que iraquianos felizes iriam comemorar a derrubada de um déspota. Em lugar disso, foi marcado por mais derramamento de sangue e mortes de estrangeiros e iraquianos aliados dos EUA.
Cresce o consenso geral de que os EUA fracassaram no país porque ignoraram os iraquianos, permitiram que o Estado se dissolvesse e desmantelaram o Exército do Iraque.
O representante dos EUA no Iraque, Paul Bremer, assumiu uma atitude de desafio ontem quando retratou o trabalho da potência ocupante nos últimos seis meses sob a melhor ótica possível.
Na realidade, porém, os EUA não proporcionaram à população iraquiana uma vida melhor do que a que ela tinha sob o regime de Saddam Hussein. Um empresário iraquiano comentou em tom cáustico: "Eles disseram que éramos inteligentes o suficiente para construirmos armas de destruição em massa capazes de colocar o mundo em risco, mas agora nos tratam como índios numa reserva do oeste americano no final do século 19".
Mísseis americanos e saqueadores iraquianos devastaram Bagdá durante e imediatamente após a guerra. Mas as principais obras em construção na cidade, hoje, não têm nada a ver com ajudar a população iraquiana e tudo a ver com proteger as forças de ocupação. Enormes muros pré-fabricados de concreto foram erguidos em torno do quartel-general da Autoridade Provisória da Coalizão, que supostamente governa o Iraque e está abrigada dentro do antigo Palácio Republicano de Saddam Hussein. É comum ouvir iraquianos comentarem que Paul Bremer, o chefe da Autoridade Provisória da Coalizão, vive mais isolado ainda do que Saddam.
Por que os EUA, seguidos de perto pelo Reino Unido, fracassaram tão redondamente na empreitada de conquistar o apoio popular dos iraquianos? Deveria ter sido muito mais fácil. Os iraquianos nunca gostaram de Saddam Hussein. Sua base de apoio era estreita. Isso explica a extraordinária brutalidade de seu regime. Saddam lançou duas guerras desastrosas, uma contra o Irã, em 1980, e outra no Kuait, em 1990, sendo que esta última arruinou seu país. O Exército iraquiano não foi à luta por ele durante a rápida guerra do início do ano, que durou apenas três semanas. Os tanques iraquianos descritos com tanta emoção pelos correspondentes de televisão que acompanharam o Exército americano foram, em sua maioria, abandonados antes de serem atingidos.
Os EUA estavam certos de que seus soldados seriam saudados por multidões entusiasmadas. Exilados iraquianos em Washington lhes haviam dito que isso seria o mínimo que poderiam esperar. Mas, mesmo que a maioria dos iraquianos odiasse Saddam Hussein, isso não quer dizer que quisesse que seu país fosse ocupado por um regime colonial. Muitos deles acreditavam que Saddam só tinha sobrevivido no poder devido ao apoio dos EUA que tivera no passado. Eles recordavam com amargura os sofrimentos suportados em função das sanções internacionais impostas ao Iraque nos anos 1990, durante os quais eles viveram na pobreza, enquanto Saddam Hussein erguia grandiosos palácios e mesquitas.
O primeiro desastre para os EUA foi o de não terem impedido os saques em todas as cidades do Iraque. Seis meses mais tarde, os iraquianos ainda repetem que "o único ministério que eles protegeram foi o do Petróleo". A maioria deles, se não todos, acredita que a razão da presença dos EUA em seu país é exatamente o petróleo.
Em seguida, em maio, os americanos desmantelaram o Exército iraquiano, que tinha 400 mil homens. Os salários que eles recebiam eram baixos, mas, com muitas pessoas passando fome e o índice de desemprego no país beirando os 75%, a iniciativa provocou uma reação furiosa.
Paul Bremer voltou atrás e começou a pagar salários, mas era tarde demais: a guerra de guerrilha já estava começando, principalmente na região sunita, ao norte de Bagdá.
O que mais chama a atenção dos iraquianos na abordagem oficial americana é a arrogância e a ignorância. Havia pessoas no Departamento de Estado que sabiam muito sobre o Iraque, mas elas foram postas de escanteio pelos neoconservadores e os civis do Pentágono.
Existe, teoricamente, uma saída para os EUA e o Reino Unido. Eles poderiam transferir poder para os iraquianos, começando por delegar autoridade real ao Conselho de Governo do Iraque, composto de exilados e adversários de Saddam Hussein. Não é um organismo perfeito, mas pelo menos seus integrantes falam árabe. Mas Mahmoud Othman, um de seus integrantes mais respeitados, falando com o "Independent" no início da semana, lamentou o fato de o Conselho "não ter muito poder". Ele destacou que os EUA convidaram 10 mil soldados turcos a entrar no Iraque sem mesmo uma consulta prévia aos integrantes do órgão.
Aos olhos da população iraquiana e do mundo, os EUA e o Reino Unido também precisam de legitimidade, algo que só pode ser proporcionado pela ONU. Não será suficiente trazer para o país tropas de El Salvador e da Ucrânia, como parte do que já foi descrito como "a coalizão dos subornados". Entretanto, desde a explosão que destruiu seu quartel-general no hotel Canal, a ONU tem menos funcionários no país do que em qualquer momento desde 1991. E, de qualquer maneira, transferir o poder real para a ONU seria uma humilhação grande demais para Bush.
O mais espantoso dos seis meses de ocupação americana do Iraque é que ela chegou ao ponto de provocar saudades de Saddam Hussein em alguns setores do país. Em Baiji, no fim de semana, manifestantes agitavam sua foto e gritavam: "Com nosso sangue e nosso espírito morreremos por ti, Saddam". Quem teria imaginado que isso fosse possível quando a estátua dele foi derrubada, há apenas seis meses?


Tradução de Clara Allain


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