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ARTIGO
Agora somos todos dinamarqueses
JEFF JACOBY
COLUNISTA DO "BOSTON GLOBE"
Comer carne bovina é sacrilégio
para os hindus. Então quando, no
outono passado, um supermercado dinamarquês fez uma promoção de carne bovina e vitela, hindus em todo o mundo reagiram
enfurecidos. A Índia retirou seu
embaixador de Copenhague, e
bandeiras da Dinamarca foram
queimadas em Calcutá, Mumbai
(ex-Bombaim) e Nova Déli. No
Sri Lanka, uma multidão de hindus espancou impiedosamente
dois funcionários de uma empresa dinamarquesa, e manifestantes
no Nepal gritaram: "Guerra à Dinamarca!". Outros em grandes cidades depredaram lojas que vendem artigos de louça dinamarquesa ou brinquedos Lego. Duas
embaixadas da Dinamarca foram
atacadas com coquetéis molotov.
Nada disso aconteceu, é claro.
Os hindus podem achar odioso
ter carne de vaca como alimento,
mas eles não recorrem a boicotes,
ameaças ou violência quando
não-hindus comem bifes ou hambúrgueres. Eles não exigem que
todos obedeçam às restrições impostas pelo hinduísmo.
O mesmo se aplica aos cristãos,
judeus, budistas ou mórmons:
eles não reagem com violência
quando seus sentimentos religiosos são ofendidos. Não esperam
que suas crenças sejam imunes a
críticas, oposição ou zombaria.
Mas os muçulmanos radicais
não pensam desse jeito.
A comoção atual em torno das
charges do profeta Muhammad,
publicadas por um jornal dinamarquês, mais uma vez ressalta a
intolerância fascista que está no
cerne do islã radical.
O "Jyllands-Posten", maior jornal diário da Dinamarca, encomendou as charges para passar
uma mensagem relativa à liberdade de expressão. O jornal quis
protestar contra o clima de intimidação pelo qual um escritor dinamarquês não conseguiu encontrar um único ilustrador para o livro infantil que escrevera sobre o
profeta Muhammad.
Nenhum artista concordara em
ilustrar o livro, porque todos tinham medo de se tornar alvos de
extremistas muçulmanos. Estarrecido com essa autocensura, o
"Jyllands-Posten" convidou artistas dinamarqueses para fazer desenhos de Muhammad, e publicou os 12 desenhos que recebeu.
A maioria dos desenhos é branda a ponto de ser maçante, especialmente quando comparada às
charges mordazes que corriqueiramente aparecem em jornais
americanos e europeus.
Algumas dessas charges vinculam Muhammad ao terrorismo
islâmico -uma delas o retrata
com uma bomba no turbante, e
uma segunda o mostra no paraíso, dizendo aos terroristas recém-chegados: "Parem! Parem! O estoque de virgens acabou!".
Outras das charges focalizam a
ameaça à liberdade de expressão.
Em uma delas, um artista está
sentado diante de sua prancheta,
nervoso e suado, desenhando
Muhammad, e ao mesmo tempo
olha sobre o ombro para se assegurar de não estar sendo vigiado.
A idéia de que algo tão brando
assim pudesse desencadear uma
reação tão desvairada -tumultos, ameaças de morte, seqüestros, queima de bandeiras- revela muitíssimo sobre o abismo que
separa os valores do mundo civilizado dos que vigoram em grande
parte do mundo islâmico.
Liberdade de imprensa, o mercado de idéias, o direito de espicaçar vacas sagradas: o islã militante
não conhece nada disso. E, se os
jihadistas conseguirem seu intento, tudo isso será eliminado em
toda parte pela censura e a intolerância da sharia.
Algumas vozes muçulmanas
corajosas e dispersas têm se manifestado contra os queimadores de
livros. O jornal jordaniano "Shihan" publicou três das charges.
"Muçulmanos do mundo, sejam
razoáveis", suplicou o editor Jihad al Momani, em editorial publicado no jornal. "O que causa
mais prejuízos ao islã? Essas caricaturas, ou fotos de um seqüestrador degolando sua vítima diante
da câmera?"
Em questão de horas, porém,
Momani estava desempregado
-demitido depois que o governo
jordaniano ameaçou tomar medidas legais.
Momani não é o único editor a
ter sido demitido nos últimos
dias. Em Paris, Jacques Lefranc,
do diário "France Soir", também
perdeu seu emprego depois de
publicar as charges de Muhammad. O proprietário do jornal,
um copta egípcio chamado Raymond Lakah, divulgou um comunicado orwelliano, em tom abjeto,
oferecendo a cabeça do editor como gesto de "respeito pelas crenças e convicções íntimas de cada
indivíduo".
Mas a equipe do "France Soir"
defendeu a decisão dele de publicar as charges, num editorial corajoso. "A melhor maneira de lutar contra a censura é impedir que
a censura aconteça", disseram os
jornalistas. "Um princípio fundamental que garante a democracia
e a sociedade secular se encontra
ameaçado. Não dizer nada equivale a bater em retirada."
Em todo o continente, quase
duas dúzias de outros jornais já se
uniram na defesa desse princípio.
Enquanto clérigos islâmicos proclamam um "dia internacional da
ira" ou declaram que "a guerra
começou", importantes publicações de Noruega, França, Itália,
Espanha, Holanda, Alemanha,
Suíça, Hungria e República Tcheca reproduziram as charges dinamarquesas.
No entanto não houve demonstração comparável de coragem
nos EUA.
Não devemos nos deixar enganar: esse assunto não vai desaparecer, como tampouco vai desaparecer a ameaça islamo-fascista.
A liberdade de expressão que temos como algo garantido e certo
está sofrendo forte ameaça e, se
não for bravamente defendida,
pode desaparecer.
Hoje os censores podem estar
combatendo algumas charges
pouco engraçadas de Muhammad, mas amanhã serão nossas
palavras e idéias que eles tentarão
por todos os meios silenciar. Gostemos disso ou não, agora somos
todos dinamarqueses.
Tradução de Clara Allain
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