São Paulo, sábado, 11 de março de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Préval no Brasil: do simbolismo à concretude

RICARDO SEITENFUS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A atual visita ao Brasil do Presidente eleito do Haiti, René Préval, é impregnada de profundo simbolismo e projeta alentadas esperanças. Seguindo-se à indispensável viagem à República Dominicana, com a qual o Haiti convive na ilha de Hispaniola, Préval decidiu dar primazia à América do Sul e, nesta, ao Brasil. Muitas leituras decorrem de tal decisão. Por um lado, é a manifestação do reconhecimento público e solene da contribuição brasileira ao restabelecimento da democracia e do respeito à vontade popular que se expressou na memorável jornada de 7 de fevereiro, quando da realização das eleições naquele pais.
Por outro, a oportunidade é utilizada para chamar a atenção das forças políticas brasileiras para que elas não cometam a leviandade de utilizar a questão haitiana como mote da campanha eleitoral que se aproxima. Préval vislumbra que a frágil democracia haitiana poderá pagar um elevado preço caso o tema de nossa presença militar seja explorado com fins meramente eleitorais.
Enfim, o interesse do presidente eleito pelo Brasil anuncia uma clara guinada das prioridades externas do Haiti. Refém histórico da França, com a qual o Haiti possui vínculos tão profundos quanto dramáticos, o país transformou-se, há mais de um século, ou numa colônia de fato ou num protetorado dissimulado dos EUA. A atual visita sinaliza a ruptura desse jogo pendular do Haiti.
De uma conturbada e assimétrica relação triangular onde o Haiti seguia a triste sina de estar entre a bigorna e o martelo, os novos dirigentes esperam tornar mais complexo o jogo internacional do país apelando para Cuba, Taiwan e certos países sul-americanos, especialmente o Brasil. Claro está que o oportunismo do governo venezuelano tentará tirar proveito da situação. Porém o pragmatismo aliado à responsabilidade e à experiência de René Préval tenderão a limitar as investidas meramente retóricas e que não sejam acompanhadas de ações capazes de reverter o tenebroso quadro socioeconômico que afeta a antiga "Pérola das Antilhas".
A nova configuração de alianças internacionais do Haiti deve estar à altura dos desafios que se apresentam de maneira dramática neste momento. Sem o frontal enfrentamento, buscando reconstruir as instituições públicas e a infra-estrutura, estabelecendo um ousado plano de desenvolvimento socioeconômico e lutando contra a miséria absoluta na qual vegeta ponderável parte do povo haitiano, a futura cooperação com os novos aliados não somente será a repetição dos erros do passado mas igualmente uma hipoteca na esperança suscitada pela nova configuração de forças internas e externas.
A sul-americanização do Haiti aponta para um desafio inédito de cooperação Sul/Sul. Durante dois longos anos, fomos capazes de levar adiante uma bem-sucedida transição à democracia no Haiti. É chegado o momento de conceder todo o respaldo ao governo legitimo, legal e popular de Préval para que ele possa responder aos verdadeiros anseios nacionais.
Caso o fizermos, não somente estaremos respondendo com ações concretas aos principais desafios colocados pela respeito da dignidade humana e pelos direitos fundamentais da humanidade. A futura cooperação brasileira ao desenvolvimento do Haiti constitui um resgate de nossas próprias origens e o pagamento de uma dívida que a América Latina tem com o sofrido povo haitiano. Mas igualmente o relacionamento que se inicia poderá indicar um novo modelo de cooperação internacional.
Desprovida de interesses mesquinhos e imediatistas, defendendo uma visão estratégica moderna das relações internacionais, na qual o bem-estar dos cidadãos importa muito mais que o eventual beneplácito dos dirigentes, a cooperação brasileira ao Haiti deverá marcar as relações continentais e impregnará a politica externa do governo Lula com o selo da solidariedade humana. Esta, cantada em versos pelos homens de bem, tem sido inalcançável pelos homens de Estado. Nossos dirigentes dispõem de oportunidade única de desmentir a história.


Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 57, doutor em Relações Internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, é Diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria. Foi enviado especial do governo Lula ao Haiti e se expressa a titulo pessoal.

Texto Anterior: Missão no Caribe: Préval quer mudanças em ação da ONU
Próximo Texto: História: Morre Profumo, pivô de escândalo britânico
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.