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ARTIGO
Préval no Brasil: do simbolismo à concretude
RICARDO SEITENFUS
ESPECIAL PARA A FOLHA
A atual visita ao Brasil do Presidente eleito do Haiti, René Préval,
é impregnada de profundo simbolismo e projeta alentadas esperanças. Seguindo-se à indispensável viagem à República Dominicana, com a qual o Haiti convive
na ilha de Hispaniola, Préval decidiu dar primazia à América do Sul
e, nesta, ao Brasil. Muitas leituras
decorrem de tal decisão. Por um
lado, é a manifestação do reconhecimento público e solene da
contribuição brasileira ao restabelecimento da democracia e do
respeito à vontade popular que se
expressou na memorável jornada
de 7 de fevereiro, quando da realização das eleições naquele pais.
Por outro, a oportunidade é utilizada para chamar a atenção das
forças políticas brasileiras para
que elas não cometam a leviandade de utilizar a questão haitiana
como mote da campanha eleitoral
que se aproxima. Préval vislumbra que a frágil democracia haitiana poderá pagar um elevado preço caso o tema de nossa presença
militar seja explorado com fins
meramente eleitorais.
Enfim, o interesse do presidente
eleito pelo Brasil anuncia uma clara guinada das prioridades externas do Haiti. Refém histórico da
França, com a qual o Haiti possui
vínculos tão profundos quanto
dramáticos, o país transformou-se, há mais de um século, ou numa colônia de fato ou num protetorado dissimulado dos EUA. A
atual visita sinaliza a ruptura desse jogo pendular do Haiti.
De uma conturbada e assimétrica relação triangular onde o Haiti
seguia a triste sina de estar entre a
bigorna e o martelo, os novos dirigentes esperam tornar mais complexo o jogo internacional do país
apelando para Cuba, Taiwan e
certos países sul-americanos, especialmente o Brasil. Claro está
que o oportunismo do governo
venezuelano tentará tirar proveito da situação. Porém o pragmatismo aliado à responsabilidade e
à experiência de René Préval tenderão a limitar as investidas meramente retóricas e que não sejam
acompanhadas de ações capazes
de reverter o tenebroso quadro
socioeconômico que afeta a antiga "Pérola das Antilhas".
A nova configuração de alianças
internacionais do Haiti deve estar
à altura dos desafios que se apresentam de maneira dramática
neste momento. Sem o frontal enfrentamento, buscando reconstruir as instituições públicas e a
infra-estrutura, estabelecendo
um ousado plano de desenvolvimento socioeconômico e lutando
contra a miséria absoluta na qual
vegeta ponderável parte do povo
haitiano, a futura cooperação
com os novos aliados não somente será a repetição dos erros do
passado mas igualmente uma hipoteca na esperança suscitada pela nova configuração de forças internas e externas.
A sul-americanização do Haiti
aponta para um desafio inédito de
cooperação Sul/Sul. Durante dois
longos anos, fomos capazes de levar adiante uma bem-sucedida
transição à democracia no Haiti.
É chegado o momento de conceder todo o respaldo ao governo legitimo, legal e popular de Préval
para que ele possa responder aos
verdadeiros anseios nacionais.
Caso o fizermos, não somente
estaremos respondendo com
ações concretas aos principais desafios colocados pela respeito da
dignidade humana e pelos direitos fundamentais da humanidade. A futura cooperação brasileira
ao desenvolvimento do Haiti
constitui um resgate de nossas
próprias origens e o pagamento
de uma dívida que a América Latina tem com o sofrido povo haitiano. Mas igualmente o relacionamento que se inicia poderá indicar um novo modelo de cooperação internacional.
Desprovida de interesses mesquinhos e imediatistas, defendendo uma visão estratégica moderna das relações internacionais, na
qual o bem-estar dos cidadãos
importa muito mais que o eventual beneplácito dos dirigentes, a
cooperação brasileira ao Haiti deverá marcar as relações continentais e impregnará a politica externa do governo Lula com o selo da
solidariedade humana. Esta, cantada em versos pelos homens de
bem, tem sido inalcançável pelos
homens de Estado. Nossos dirigentes dispõem de oportunidade
única de desmentir a história.
Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 57,
doutor em Relações Internacionais pelo
Instituto Universitário de Altos Estudos
Internacionais da Universidade de Genebra, é Diretor da Faculdade de Direito de
Santa Maria. Foi enviado especial do governo Lula ao Haiti e se expressa a titulo pessoal.
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