São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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Pesquisador acredita que erros dos EUA e imaturidade política dos xiitas tenham causado onda atual de violência

É tarde para prender líder xiita, diz analista

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O quadro caótico em que o Iraque mergulhou nos últimos dias tem sobretudo como causa a inabilidade dos Estados Unidos, que involuntariamente insuflaram a liderança do líder radical xiita Moqtada al Sadr.
Os EUA fecharam um de seus jornais e se expuseram a protestos às vésperas de uma de suas mais importantes festas religiosas.
É o que disse em entrevista à Folha o israelense Amatzia Baram, 65, professor da Universidade de Haifa e pesquisador do United States Institute of Peace, organização independente financiada pelo Congresso norte-americano.
A seu ver o conflito também tem como origem a falta de cultura política da comunidade xiita, o que a impede de fazer concessões para que os grupos étnicos e religiosos do Iraque construam consensualmente uma plataforma institucional da qual sairia um país democrático. Eis os principais trechos da entrevista.

 

Folha - Como explicar a ascensão tão rápida da liderança do xiita radical Moqtada al Sadr?
Amatzia Baram -
Até há algumas semanas ninguém poderia prever essa ascensão. Mas já existiam sinais de que ele poderia se tornar muito influente. Em Najaf, os sábios islâmicos formam um conselho encabeçado pelo aiatolá Ali al Sistani. Há alguns meses os americanos informaram a esse conselho que Al Sadr se preparava para desafiá-lo. Mas Al Sistani e seu grupo não reagiram porque temiam Al Sadr e sua base de apoio, sobretudo entre os xiitas mais pobres de Bagdá, que o ajudaram a construir uma milícia armada e tribunais que atuam como um Estado dentro do Estado.

Folha - Havia então o risco de um confronto armado entre xiitas?
Baram -
Al Sistani temia a milícia xiita de Al Sadr, já que ele próprio não possuía uma força militar organizada. Ou seja, Al Sistani não queria o confronto.

Folha - A idéia de confronto então partiu dos norte-americanos?
Baram -
Exatamente. Mas dentro de um cronograma absolutamente inábil, que apenas acirrou as tensões e levou ao atual impasse. Domingo [hoje] comemora-se entre os xiitas o luto pelo 40º dia após a morte de Hussein, uma das duas datas mais importantes de seu calendário religioso. É o Arbaeen. De 3 milhões a 4 milhões de xiitas participam de peregrinações em Najaf, Karbala e no bairro de Kazimiyeh, em Bagdá. É um período de imensa emoção. O que eu diria é que fechar o jornal de Al Sadr alguns dias antes dessa festividade religiosa foi uma decisão desastrosa [o "Al Hawza" foi fechado pelos americanos em 28 de março, por incitação a atos de sabotagem contra a coalizão].

Folha - Há uma relação entre o fechamento do jornal e o assassinato e a incineração de cadáveres de civis americanos?
Baram -
Sem dúvida. Os incidentes trágicos de Fallujah já representam uma resposta dos radicais xiitas. Em suma, o fechamento do jornal e a proximidade do Arbaeen criaram uma situação explosiva da qual Moqtada al Sadr, mesmo sem uma liderança muito forte, soube tirar proveito.

Folha - Qual teria sido a melhor alternativa para os EUA?
Baram -
Eles deveriam ter fechado o jornal depois do Arbaeen, e então, numa operação relâmpago, prender o grupo de Al Sadr e neutralizá-lo política e militarmente. Agora seria muito tarde.

Folha - Como explicar que sunitas e xiitas estejam excepcionalmente atuando em ações conjuntas?
Baram -
É muitíssimo incomum que essa cooperação ocorra. É algo que começou de forma embrionária há seis ou sete meses. Eu mesmo na época escrevi um artigo em que previa essa aliança. Estou, mesmo assim, surpreso com a dimensão que essa atuação conjunta vem assumindo. Para os EUA, isso é uma tragédia.

Folha - É algo que compromete o cenário de implantar no país uma democracia?
Baram -
Acredito que seja justamente essa a intenção positiva e generosa dos norte-americanos. Mas esse projeto está por enquanto comprometido pelo consenso crescente entre sunitas e xiitas de que os americanos são um inimigo que precisa ser combatido.

Folha - Só os americanos são culpados pela atual situação?
Baram -
Com certeza não é o caso. Há também, e sobretudo, a imaturidade da cultura política iraquiana. Depois de 35 anos sob a ditadura de Saddam Hussein, é difícil exigir de uma nação maturidade para negociar e fazer concessões. Os comportamentos são de intransigência. Há um contraste no Iraque entre a responsabilidade e a maturidade dos curdos e a irresponsabilidade e a imaturidade dos xiitas. Estes procuram mobilizar por meio de apelos bem mais religiosos que políticos. Consideram cristãos e judeus como estatutariamente hostis.

Folha - Não haveria também o desapontamento com os rumos da ocupação do Iraque?
Baram -
Esse desapontamento tem causas precisas. Os Estados Unidos cometeram erros importante ao não terem uma política de empregos e ao não saberem como conversar com a população, apesar dos jornais, rádios e TVs que controlam.

Folha - O sr. acredita que Al Sadr e seus seguidores estavam por trás do assassinato do aiatolá Khoei, em abril do ano passado?
Baram -
Creio que o grupo de Al Sadr tenha sido responsável pelo crime. Tão logo Khoei foi morto, as milícias de Al Sadr cercaram a casa de Al Sistani, seu sucessor, ameaçando matá-lo. Mas Al Sistani foi salvo por um grupo de 500 líderes tribais xiitas.

Folha - Como analisar a hostilidade contra os americanos e não contra os britânicos, que controlam a região do sul com mais xiitas?
Baram -
Os britânicos foram mais cautelosos. Mas não creio que em Karbala e Najaf, cidades da esfera americana, as pessoas sejam fundamentalmente contra os EUA. Se Al Sadr assumiu tão facilmente o controle dessas cidades é porque a população não se dispunha a lutar contra ele. E não porque ela o apoiasse. Nessas cidades a liderança xiita reconhecida é a de Al Sistani.

Folha - O Conselho de Governo Iraquiano, autoridade civil montada pelos EUA, poderia a esta altura fazer alguma coisa?
Baram -
O conselho não tem poder nenhum. A idéia dos americanos é fortalecê-lo. Mas como dar ao conselho maior legitimidade se seus integrantes não são eleitos? Outra saída estaria em fazer com que os membros do conselho fizessem concessões mútuas para chegar a uma Constituição. Mas os representantes xiitas nesse colegiado não têm liberdade de negociação porque Al Sistani não se predispõe a concessões, a compromissos. Ele é um dos responsáveis pelo impasse.

Folha - Há hoje no Iraque 135 mil militares americanos e 26,5 mil de outras nacionalidades. Seria preciso uma presença militar ainda maior para assegurar a ordem?
Baram -
Eu sempre recomendo negociações e creio que a repressão seja uma solução inadequada. Mas o problema está na falta de bases sobre as quais negociar. Nenhuma negociação teria chances de sucesso sem que se desarme a milícia de Al Sadr e se fechem seus tribunais islâmicos, que prendem e torturam, que determinam que se jogue ácido no rosto das mulheres que não saem às ruas com a cabeça coberta por um véu.

Folha - Caso pudesse dar um único conselho aos EUA, o que diria?
Baram -
Eu os exortaria para que construíssem uma nova coalizão, que incluiria Al Sistani como um líder xiita fortalecido. Os xiitas, no Conselho de Governo, também são representados pelo Partido Dawa e por Abdel-Aziz al Hakim. O roteiro só se comprometeria se esses xiitas mais moderados se recusassem a neutralizar Al Sadr.


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