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ARTIGOS
Avestruzes antiamericanos
O Conselho de Segurança já acobertou as omissões mais criminosas. O templo da "lei internacional" nada disse do massacre promovido pelo Khmer Vermelho no Camboja
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ANDRÉ GLUCKSMANN
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"
A guerra mal começara, e a
discussão já se acirrava em
torno do pós-guerra. Que papel
seria reservado à ONU? Quem pagaria pelos estragos? Quem ficaria
com os contratos de reconstrução? A controvérsia seria surrealista se não fosse a manifestação
indireta de uma incerteza fundamental: como fica o racha entre
Ocidente e Ocidente?
Mero rasgo no tecido da solidariedade transatlântica ou presságio de uma inesperada inversão
de alianças?
Passando por Paris em 11 de fevereiro, Vladimir Putin, presidente russo, novo arcanjo da paz, diz
que marcou "esse dia com uma
pedra branca" e saúda Jacques
Chirac, presidente francês, como
"líder que se emancipou da lógica
dos blocos".
O bloco comunista tendo desaparecido desde 1990, Putin felicita
o homem que, para ele, rompe o
bloco democrático e põe fim à
Aliança Atlântica. A Otan é um
vestígio do passado, a Europa se
liberta da tutela americana, não
existe mais inimigo comum para
unir os tomadores de vinho aos
amantes da Coca-Cola. Em Paris e
em Berlim, parece ser mais correto se entender com o Putin pós-moderno do que com o fundamentalista Bush.
França, Alemanha, Rússia, China, Síria -o "campo da paz" eleva a voz para defender o "direito"
contra a força. A Rússia, único Estado que pode hoje se gabar de ter
arrasado uma capital por completo, Grozni, é a primeira a tocar o
sino da hipocrisia.
Pequim saqueia o Tibete. A Síria
ocupa o Líbano. Alegre companhia essa que, sob a insígnia do
"direito internacional", glorifica o
direito sem limites de um Estado
de fazer o que bem entende em
seu próprio território. Cada homem é dono de sua própria casa;
a cada açougueiro, seu rebanho e
seu matadouro próprios.
Reduzido ao princípio da soberania absoluta, o direito internacional equivale a autorizar Saddam Hussein a matar sua população com gás tóxico, a permitir que
Putin leve suas "operações antiterroristas" no Cáucaso até o genocídio. E, fazendo uma retrospectiva, por que não dizer que os
hutus, majoritários em Ruanda,
tinham todo direito de exterminar os tutsis?
Os profetas de uma "multipolaridade" que supostamente refrearia os desmandos praticados pelo
"império" parecem clamar por
um Carl Schmitt, mesmo que a
contragosto. Esse último, em seu
período nazista, dotou o Estado
de um poder dito "totalitário" ou
"decisionista".
Na medida em que a essência da
soberania se manifesta no privilégio de decretar e suspender as leis
e de fazer o que se bem entende,
sem se curvar a regras escritas ou
não escritas, se compreende que
esse privilégio quase divino atribuído à autoridade central seduza
os autocratas chinês, russo ou iraquiano. Mas é motivo de espanto
que democratas participem desse
culto a uma soberania "über
alles" garantida contra qualquer
ingerência, seja qual for o crime
que possa vir a cometer.
Os bons apóstolos unidos contra George W. Bush crêem salvar a
autoridade da ONU e do Conselho de Segurança, que são a lei e
seu profeta. Mas os cinco membros permanentes do CS, que
possuem o poder de veto, estão
acima das leis ditadas pelo CS
-podem impedir que sejam
enunciadas e aplicadas.
França, Rússia e China erigem a
ONU em guardiã das leis para
santificar seus privilégios extraordinários de soberania: nenhuma
decisão pode ser tomada sem a
concordância delas, nenhuma ditadura derrubada sem sua bênção.
O Conselho de Segurança já
acobertou as omissões mais criminosas. Com o apoio da China, o
templo da "lei internacional" não
encontrou nada a dizer durante o
massacre promovido pelo Khmer
Vermelho no Camboja, entre
1975 e 1978.
E por acaso ele impediu o genocídio dos tutsis em Ruanda
(1994), a limpeza étnica na Bósnia, em Kosovo (1999) e o calvário
atual dos tchetchenos? Quando
foi preciso -com que atraso!-
dar um basta a Slobodan Milosevic, a Otan, com Chirac e Fischer à
sua frente, não pensou duas vezes
antes de alegremente abrir mão
do sinal verde do Conselho de Segurança (pois a
Rússia teria dito
"niet").
Estados-maiores e diplomatas
frequentemente
se lançam em conflitos com planos e
conceitos ultrapassados.
Os setores "antiguerra", por sua
vez, revivem a
campanha contra
a intervenção dos
EUA no Vietnã.
Basta passar os
olhos pela televisão para saber que
as operações no
Iraque não se assemelham em nada às aplicações
maciças de napalm no Vietnã, na
época dessa guerra.
Na esteira das lutas anticoloniais, os estudantes do passado
-eu fui um deles- podiam, não
sem alguma dose de ilusão, gritar
"Ho! Ho! Ho Chi Minh!". Mas
aclamar o ex-tirano de Bagdá é
mais difícil, ele que costumava
torturar e massacrar abertamente, para que todos
vissem. Os pacifistas preferem esquecê-lo.
Sair às ruas para
vaiar Bush e Blair
reconforta o Stalin iraquiano, que
corria o risco de
infligir a seus súditos 20 anos adicionais de terror.
Não há do que
sentir orgulho.
Enquanto alguns
gritam: "Abaixo a
guerra!", o eco
responde: "Viva a
ditadura!".
Sinto pena de
meu amigo Joschka Fischer, que,
alguns anos atrás,
teve a coragem de tomar partido
contrário ao dos Verdes. Ele explicava: pior do que a guerra era
"Auschwitz".
Quando falava Auschwitz, ele
não queria dizer a repetição do
extermínio, mas o símbolo de um
terror e uma servidão sem fim. Ele
concluía que era urgente interromper a escalada desumana do
tirano de Belgrado ainda em seus
primórdios, usando de meios militares. Será que agora, quando é
ministro, acha Saddam Hussein
mais humano e menos perigoso
(do que Milosevic)?
Sinto pena de meu presidente,
Jacques Chirac, esquecido de sua
ousadia diante de Milosevic. Em
relação a essa guerra, ele constatou que o desarmamento do ex-ditador levaria, por isso mesmo, à
sua queda, "pois o desarmamento
supõe uma transparência. E as ditaduras não resistem à transparência por muito tempo".
É correto, mas o raciocínio deveria ser levado adiante: esse bom
senso não agrada a quem sabe
que, ao depor as armas, assina sua
sentença de morte. A não ser que
imaginemos que Saddam possua
um desejo suicida do qual nunca
deu qualquer prova, devemos
concluir que ele faria tudo para
conservar seu poder de destruição e perpetuar o jogo de esconde-esconde no qual vem se mostrando tão hábil, há anos.
Se desarmamento acarretaria
queda do regime, a recíproca é
ainda mais verdadeira: para que o
Iraque se desarme é preciso romper sua carapaça totalitária. E foi
exatamente isso que o prometido
veto franco-russo-chinês quis
proibir! Estranho "campo da paz"
que se nega a desarmar um fomentador de guerra evidente.
Divórcio no Ocidente? O antiamericanismo, de um lado, e o desprezo pela velha Europa, do outro, são coisas que vão e vêm há
três séculos. Elas não impediram
a aliança ocidental de vencer a
Guerra Fria.
Pela primeira vez, o racha entre
Ocidente e Ocidente divide a política mundial, ameaça a construção européia, prejudica a Otan e
paralisa as organizações internacionais. Os estereótipos se multiplicam. Analfabeta, caubói, fanática religiosa e cínica pragmática,
governada por um cabeça oca e
um clã de falcões, a América, repleta de ideais infantis, tem sede
de petróleo. É uma hegemonia em
pleno crescimento e um império
parasitário em fase de decadência
final...
Pouco importam os argumentos contraditórios -Bush é o perigo número 1, e Saddam, tão
mortífero quanto desprezível demais para ser reconhecido, não
tem importância nenhuma.
Paradoxo. Esse vulcão de ódio
vem se preparando para explodir
desde 11 de setembro de 2001. A
primeira reação foi a compaixão.
A segunda, a negação: os americanos são castigados na mesma
moeda em que pecaram; "arrogância", "imperialismo", eles recebem o troco devido. Em seguida, eles se vingam do primeiro
que vêem pela frente... Bagdá arde
em chamas para consolar Manhattan. O delírio antiamericano
é anterior à guerra; ele nasce de
um pânico reprimido.
O engajamento anglo-americano une contra ele os nostálgicos
do 10 de setembro de 2001. A vulnerabilidade revelada do protetor
apavora. O poder de devastação
maciça foi monopolizado e bloqueado durante o meio século anterior por algumas poucas potências nucleares.
A partir de 11 de setembro de
2001, ele passou a estar ao alcance
de muitos. Não apenas o terrorismo atinge uma envergadura que
nunca antes tinha tido como a
montagem quase artesanal de arsenais biológicos, químicos ou até
mesmo atômicos permite que os
predadores se protejam.
Osama bin Laden escondido
nas cavernas de Tora Bora é algo
rústico, primitivo. Mais promissora é a solução proposta por Kim
Jong II em seu silo nuclear. Programar a união de um terrorismo
à la Bin Laden com uma "santuarização" ao estilo de Kim é algo
que Saddam não poderia nem
preparar nem conceber -o homem tem escrúpulos demais, o
amor ao próximo está em seu coração, e as ambições explosivas
lhe são estranhas!
Sim -enfiemos a cabeça na
areia, como avestruzes, e tomemos muito cuidado para não
olhar para fora.
André Glucksmann, 65, é filósofo e ensaísta
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