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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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ARTIGOS

Avestruzes antiamericanos


O Conselho de Segurança já acobertou as omissões mais criminosas. O templo da "lei internacional" nada disse do massacre promovido pelo Khmer Vermelho no Camboja


ANDRÉ GLUCKSMANN

ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

A guerra mal começara, e a discussão já se acirrava em torno do pós-guerra. Que papel seria reservado à ONU? Quem pagaria pelos estragos? Quem ficaria com os contratos de reconstrução? A controvérsia seria surrealista se não fosse a manifestação indireta de uma incerteza fundamental: como fica o racha entre Ocidente e Ocidente?
Mero rasgo no tecido da solidariedade transatlântica ou presságio de uma inesperada inversão de alianças?
Passando por Paris em 11 de fevereiro, Vladimir Putin, presidente russo, novo arcanjo da paz, diz que marcou "esse dia com uma pedra branca" e saúda Jacques Chirac, presidente francês, como "líder que se emancipou da lógica dos blocos".
O bloco comunista tendo desaparecido desde 1990, Putin felicita o homem que, para ele, rompe o bloco democrático e põe fim à Aliança Atlântica. A Otan é um vestígio do passado, a Europa se liberta da tutela americana, não existe mais inimigo comum para unir os tomadores de vinho aos amantes da Coca-Cola. Em Paris e em Berlim, parece ser mais correto se entender com o Putin pós-moderno do que com o fundamentalista Bush.
França, Alemanha, Rússia, China, Síria -o "campo da paz" eleva a voz para defender o "direito" contra a força. A Rússia, único Estado que pode hoje se gabar de ter arrasado uma capital por completo, Grozni, é a primeira a tocar o sino da hipocrisia.
Pequim saqueia o Tibete. A Síria ocupa o Líbano. Alegre companhia essa que, sob a insígnia do "direito internacional", glorifica o direito sem limites de um Estado de fazer o que bem entende em seu próprio território. Cada homem é dono de sua própria casa; a cada açougueiro, seu rebanho e seu matadouro próprios.
Reduzido ao princípio da soberania absoluta, o direito internacional equivale a autorizar Saddam Hussein a matar sua população com gás tóxico, a permitir que Putin leve suas "operações antiterroristas" no Cáucaso até o genocídio. E, fazendo uma retrospectiva, por que não dizer que os hutus, majoritários em Ruanda, tinham todo direito de exterminar os tutsis?
Os profetas de uma "multipolaridade" que supostamente refrearia os desmandos praticados pelo "império" parecem clamar por um Carl Schmitt, mesmo que a contragosto. Esse último, em seu período nazista, dotou o Estado de um poder dito "totalitário" ou "decisionista".
Na medida em que a essência da soberania se manifesta no privilégio de decretar e suspender as leis e de fazer o que se bem entende, sem se curvar a regras escritas ou não escritas, se compreende que esse privilégio quase divino atribuído à autoridade central seduza os autocratas chinês, russo ou iraquiano. Mas é motivo de espanto que democratas participem desse culto a uma soberania "über alles" garantida contra qualquer ingerência, seja qual for o crime que possa vir a cometer.
Os bons apóstolos unidos contra George W. Bush crêem salvar a autoridade da ONU e do Conselho de Segurança, que são a lei e seu profeta. Mas os cinco membros permanentes do CS, que possuem o poder de veto, estão acima das leis ditadas pelo CS -podem impedir que sejam enunciadas e aplicadas.
França, Rússia e China erigem a ONU em guardiã das leis para santificar seus privilégios extraordinários de soberania: nenhuma decisão pode ser tomada sem a concordância delas, nenhuma ditadura derrubada sem sua bênção.
O Conselho de Segurança já acobertou as omissões mais criminosas. Com o apoio da China, o templo da "lei internacional" não encontrou nada a dizer durante o massacre promovido pelo Khmer Vermelho no Camboja, entre 1975 e 1978.
E por acaso ele impediu o genocídio dos tutsis em Ruanda (1994), a limpeza étnica na Bósnia, em Kosovo (1999) e o calvário atual dos tchetchenos? Quando foi preciso -com que atraso!- dar um basta a Slobodan Milosevic, a Otan, com Chirac e Fischer à sua frente, não pensou duas vezes antes de alegremente abrir mão do sinal verde do Conselho de Segurança (pois a Rússia teria dito "niet").
Estados-maiores e diplomatas frequentemente se lançam em conflitos com planos e conceitos ultrapassados.
Os setores "antiguerra", por sua vez, revivem a campanha contra a intervenção dos EUA no Vietnã. Basta passar os olhos pela televisão para saber que as operações no Iraque não se assemelham em nada às aplicações maciças de napalm no Vietnã, na época dessa guerra.
Na esteira das lutas anticoloniais, os estudantes do passado -eu fui um deles- podiam, não sem alguma dose de ilusão, gritar "Ho! Ho! Ho Chi Minh!". Mas aclamar o ex-tirano de Bagdá é mais difícil, ele que costumava torturar e massacrar abertamente, para que todos vissem. Os pacifistas preferem esquecê-lo.
Sair às ruas para vaiar Bush e Blair reconforta o Stalin iraquiano, que corria o risco de infligir a seus súditos 20 anos adicionais de terror.
Não há do que sentir orgulho. Enquanto alguns gritam: "Abaixo a guerra!", o eco responde: "Viva a ditadura!".
Sinto pena de meu amigo Joschka Fischer, que, alguns anos atrás, teve a coragem de tomar partido contrário ao dos Verdes. Ele explicava: pior do que a guerra era "Auschwitz".
Quando falava Auschwitz, ele não queria dizer a repetição do extermínio, mas o símbolo de um terror e uma servidão sem fim. Ele concluía que era urgente interromper a escalada desumana do tirano de Belgrado ainda em seus primórdios, usando de meios militares. Será que agora, quando é ministro, acha Saddam Hussein mais humano e menos perigoso (do que Milosevic)?
Sinto pena de meu presidente, Jacques Chirac, esquecido de sua ousadia diante de Milosevic. Em relação a essa guerra, ele constatou que o desarmamento do ex-ditador levaria, por isso mesmo, à sua queda, "pois o desarmamento supõe uma transparência. E as ditaduras não resistem à transparência por muito tempo".
É correto, mas o raciocínio deveria ser levado adiante: esse bom senso não agrada a quem sabe que, ao depor as armas, assina sua sentença de morte. A não ser que imaginemos que Saddam possua um desejo suicida do qual nunca deu qualquer prova, devemos concluir que ele faria tudo para conservar seu poder de destruição e perpetuar o jogo de esconde-esconde no qual vem se mostrando tão hábil, há anos.
Se desarmamento acarretaria queda do regime, a recíproca é ainda mais verdadeira: para que o Iraque se desarme é preciso romper sua carapaça totalitária. E foi exatamente isso que o prometido veto franco-russo-chinês quis proibir! Estranho "campo da paz" que se nega a desarmar um fomentador de guerra evidente.
Divórcio no Ocidente? O antiamericanismo, de um lado, e o desprezo pela velha Europa, do outro, são coisas que vão e vêm há três séculos. Elas não impediram a aliança ocidental de vencer a Guerra Fria.
Pela primeira vez, o racha entre Ocidente e Ocidente divide a política mundial, ameaça a construção européia, prejudica a Otan e paralisa as organizações internacionais. Os estereótipos se multiplicam. Analfabeta, caubói, fanática religiosa e cínica pragmática, governada por um cabeça oca e um clã de falcões, a América, repleta de ideais infantis, tem sede de petróleo. É uma hegemonia em pleno crescimento e um império parasitário em fase de decadência final...
Pouco importam os argumentos contraditórios -Bush é o perigo número 1, e Saddam, tão mortífero quanto desprezível demais para ser reconhecido, não tem importância nenhuma.
Paradoxo. Esse vulcão de ódio vem se preparando para explodir desde 11 de setembro de 2001. A primeira reação foi a compaixão. A segunda, a negação: os americanos são castigados na mesma moeda em que pecaram; "arrogância", "imperialismo", eles recebem o troco devido. Em seguida, eles se vingam do primeiro que vêem pela frente... Bagdá arde em chamas para consolar Manhattan. O delírio antiamericano é anterior à guerra; ele nasce de um pânico reprimido.
O engajamento anglo-americano une contra ele os nostálgicos do 10 de setembro de 2001. A vulnerabilidade revelada do protetor apavora. O poder de devastação maciça foi monopolizado e bloqueado durante o meio século anterior por algumas poucas potências nucleares.
A partir de 11 de setembro de 2001, ele passou a estar ao alcance de muitos. Não apenas o terrorismo atinge uma envergadura que nunca antes tinha tido como a montagem quase artesanal de arsenais biológicos, químicos ou até mesmo atômicos permite que os predadores se protejam.
Osama bin Laden escondido nas cavernas de Tora Bora é algo rústico, primitivo. Mais promissora é a solução proposta por Kim Jong II em seu silo nuclear. Programar a união de um terrorismo à la Bin Laden com uma "santuarização" ao estilo de Kim é algo que Saddam não poderia nem preparar nem conceber -o homem tem escrúpulos demais, o amor ao próximo está em seu coração, e as ambições explosivas lhe são estranhas!
Sim -enfiemos a cabeça na areia, como avestruzes, e tomemos muito cuidado para não olhar para fora.


André Glucksmann, 65, é filósofo e ensaísta


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