São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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O DIA SEGUINTE

"Onde estão todas as pessoas que vejo todas as manhãs?", pergunta, chorando, uma passageira

Poucos têm coragem de pegar o trem

MIGUEL MORA
DO "EL PAÍS", EM MADRI

A empregada doméstica Mari Carmen Sánchez, 50, chegou ao trabalho ontem nervosa. Não por sua própria causa, mas por causa do medo das outras pessoas: ""Em Coslada, vi muitas pessoas indo até a plataforma da estação de trem e, de repente, dando meia-volta e indo embora. Não conseguiam subir".
No horário em os trens sem destino partiram ainda está escuro no mês de março. São 6h35: já se passaram 23 horas e 35 minutos desde que os trens do inferno partiram em sua última viagem inocente, com 6.000 pessoas a bordo. A estação de Alcalá de Henares é um lugar escuro e gelado. Mais do que uma estação de subúrbio num horário de rush, o lugar onde os terroristas carregaram as 13 bombas parecia, ontem, a estação de Venta de Baños numa noite qualquer de inverno franquista.
Tudo acontecia em câmara lenta: a vida continuava, mas de modo estranho, como se as pessoas tivessem perdido o norte.
No dia anterior, milhares de pessoas de idades, nacionalidades, raças e ilusões diversas inseriram seus bilhetes nas 19 máquinas da estação. Ontem, como se um estigma invencível tivesse marcado o lugar, praticamente ninguém passava pelas máquinas. José Domínguez, 55, desenhista técnico, foi um dos primeiros a fazer frente ao terror. Às 6h50, ocupava um vagão inteiro sozinho. "Medo? Não mais do que em outro dia qualquer. Se estamos vivos, é por milagre."
O trem pára. O luminoso vermelho marca 6h57. Estamos em Vicálvaro, a estação anterior a Santa Eugenia. Domínguez continua a falar: "Costumo ir a Atocha todos os dias. O trem fica cheio em Torrejón e Coslada, sobe muita gente vinda de fora -romenos, poloneses, sul-americanos, marroquinos... Coitados, eles atravessam o mundo para ganhar a vida. Um dia saem de casa para trabalhar e morrem no meio do caminho. São sempre os mais fracos que pagam".
Julio Gomis, do Senegal, tem 36 anos e a pele cor de chocolate. Trabalha na construção e vive na Espanha há cinco anos, legalmente. "Deixei minha família no Senegal", ele conta, "mas gosto da Espanha e sempre me dei bem com meus vizinhos. Agora estou trabalhando nas obras do Museu do Prado". São 7h15. Gomis conta que ele também passou medo. "Foi uma coisa terrível. Embarquei no trem que saiu um pouco antes do trem das duas bombas e estava subindo num ônibus em Atocha quando ouvi a primeira explosão. Vi que as pessoas estavam olhando, me voltei para olhar, e explodiu a segunda bomba. As pessoas saíram correndo, elas caíam nas escadas. Foi um horror."
São 7h17, e Mari Burgueño, que se diz "faxineira terceirizada", chora. "Onde estão todas as pessoas que vejo no trem todas as manhãs? Espero que tenham pegado o ônibus. Eles nos fizeram muito mal, mas acho que podem fazer ainda mais."
Às 7h20, o céu finalmente se tinge de violeta. Sãos, salvos e aliviados, os 15 a 20 valentes do primeiro trem da linha 12-M entram na estação de metrô de Chamartin. E o dia finalmente amanhece, o que não é pouco.


Tradução de Clara Allain


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