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GUERRA NO ORIENTE MÉDIO
Conflito fermenta rixas sectárias no Líbano
Tensões latentes num país onde o equilíbrio entre as quase 20 comunidades religiosas é frágil ameaçam explodir no pós-guerra
Tanto conciliação quanto guerra civil podem suceder conflito atual, mas segundo especialistas, quadro hoje ainda é diferente do de 1975
MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A BEIRUTE
Cristãos se armam, sunitas
costuram alianças e xiitas prometem vingança. Também há
cristãos que pregam a união nacional, sunitas que admiram a
resistência contra o inimigo e
xiitas desabrigados que agradecem a acolhida. Sentimentos
contraditórios se misturam no
caldeirão religioso do Líbano,
em fogo brando desde o fim da
guerra civil (1975-90), que agora ameaça entrar de novo em
ebulição. Poucos arriscam uma
previsão sobre o pós-guerra,
mas todos sabem que o sangrento confronto entre Israel e
o Hizbollah implicará numa
reordenação de forças no frágil
equilíbrio político do país. De
um pacto de união nacional à
eclosão de uma nova guerra, as
possibilidades estão abertas.
"Não é esta guerra que me
preocupa, mas o que virá depois", diz Mustafah Haiad,
membro do Partido Árabe Libanês, do general Ahmad al
Khatib, que na guerra civil dividiu o Exército e há dois meses
foi acusado de formar uma milícia sunita. "Isso é mentira,
mas posso dizer que temos 12
mil homens prontos para pegar
em armas em caso de emergência." Por "emergência", leia-se
um Hizbollah forte por sobreviver aos ataques de Israel.
Cristãos também se preparam. Em Beirute flutua nos círculos políticos a informação de
que o grupo ligado ao ex-líder
falangista Samir Geagea recebeu 4.000 fuzis, apesar do forte
bloqueio imposto por Israel.
Geagea foi o único líder libanês
preso por crimes cometidos na
guerra civil. Condenado a várias prisões perpétuas, foi solto
no ano passado, por força de
uma anistia.
Colcha de retalhos
Antes de juntar as peças que
formarão o imprevisível quebra-cabeças do pós-guerra, é
bom lembrar que o Líbano é a
terra das teorias conspiratórias
e que cada uma de suas comunidades tem a própria agenda
política.
"Não são só teorias, são conspirações reais e permanentes",
corrige a analista política Roula
Talj, ex-assessora do governo
libanês e presença constante
nos debates sobre política regional da rede CNN. "O Líbano
é o estômago do Oriente Médio.
Quando Irã e Arábia Saudita se
enfrentam, são os xiitas e sunitas daqui que sofrem a indigestão. O mosaico é tão diversificado que reflete toda a região."
A dificuldade em formar uma
identidade nacional está ligada
à fragmentação da população
libanesa. "O país é historicamente formado por diferentes
comunidades religiosas, que ao
mesmo tempo têm uma natureza tribal", diz o professor Kamal Salibi, da Universidade
Americana de Beirute, um dos
mais respeitados historiadores
do país. "Você é obrigado a ser
leal a seu grupo, mesmo que
não seja religioso." A lealdade
diminuiu com as exigências da
vida moderna, mas segue presente na vida libanesa e sobe à
tona em tempos de conflito.
A comunidade com características mais fortes de clã é a
dos cristãos, especialmente os
maronitas. Derrotados na
guerra civil, conseguiram manter-se dominantes graças ao
complexo sistema político sectário. Criado após a Primeira
Guerra pela França, determina
que o presidente seja cristão, o
premiê sunita e o presidente do
Parlamento, xiita.
"Os cristãos devem a manutenção de seu poder no pós-guerra aos sunitas, que temiam
que o crescimento xiita ameaçasse a liberalidade da sociedade", diz Salibi. Segundo ele, os
sunitas, em sua maioria, uma
burguesia urbana, precisavam
dos cristãos para evitar um Estado xiita religioso. "Eles podem até não comer presunto ou
beber álcool, mas não querem
ninguém lhes dizendo isso."
Garantia legal
A Constituição libanesa reconhece 17 comunidades religiosas, 15 organizadas por leis e
decretos. O documento nacional de identidade, que indica a
religião do portador, já teve
usos sangrentos. "Durante a
guerra civil, você podia ser
morto ao ter a religião revelada
pelo documento", lembra o
druso Amin Younes, dono de
um café em Beirute. Desde
2000, a religião deixou de constar no documento, mas procedimentos civis continuam separados por grupo, como registros de nascimento, certidões
de casamento e de óbito.
"O libanês pode até não gostar da palavra divisão, principalmente em tempos de guerra,
mas ele nasce, vive e morre de
acordo com as regras de sua comunidade", explica o escritor
brasileiro Roberto Khatlab, há
20 anos em Beirute.
Influências se repartem no
governo e na mídia. Jornais e
TVs são identificados pela afinidade com dado grupo.
De modo geral também é
possível identificar a divisão
sectária na geografia do Líbano.
O sul e o vale do Bekaa, no nordeste, são majoritariamente
xiitas. A costa norte, de Beirute
a Trípoli, é praticamente dominada pelos cristãos maronitas.
Os sunitas estão no extremo
norte e em parte da costa. Nas
montanhas há os drusos. E a capital é uma grande mistura.
"Até a guerra civil, em Beirute todos viviam mais ou menos
juntos. Com a divisão entre leste e oeste, houve uma separação física entre as comunidades", diz Khatlab.
Culturalmente, o Líbano é
um país partido entre dois
mundos. No ocidental, majoritariamente cristão, muitos preferem falar francês e inglês até
em casa, grifes da moda fazem
parte do cenário e a vida noturna nada deve a balneários europeus badalados. Na oriental, de
predominância xiita, a austeridade religiosa dá o tom.
Cicatrizes
A convivência foi pacífica nos
16 anos desde o fim da guerra
civil, mas entre os que vivenciaram os horrores da violência
sectária as feridas não cicatrizaram. Um exemplo é o cristão
Samy Zarhal, 61, dono do Rock
Inn, que ele garante ser o primeiro "night club" de Beirute.
Em 1983, Samy foi seqüestrado
por militantes xiitas e ficou dez
dias num cubículo levando surras, incomunicável. "Jamais
vou esquecer ou perdoar. São
pessoas terríveis."
E se Israel avançar até Beirute, como em 1982? "Não tenho
problema com os israelenses.
São ocidentais, como nós, dá
para dialogar", diz Samy.
As tensões religiosas se misturam às desigualdades sociais
e delas se alimentam. Os xiitas
formam a maior parte da camada de baixo -uma alavanca para o Hizbollah crescer politicamente. Ao preencher o vácuo
deixado pelo Estado, com uma
ampla rede social de escolas,
creches e hospitais, o grupo cimentou seu poder. "O Hizbollah ficou no lugar de um Estado que negligenciou a população carente, em sua maioria xiita", diz o cientista político Hillel Hassan, da UAB.
Se os ressentimentos cristãos vêm da guerra civil, os xiitas são fermentados agora. Enquanto fogem dos mísseis e recolhem os corpos de parentes,
os xiitas vêem áreas cristãs intactas. "Os cristãos são racistas,
se acham superiores e parece
até que gostam de ver o sofrimento xiita", diz o xiita Hassan
Ibrahim, vendedor de Bint
Jbeil, uma das cidades do sul
mais castigadas pela guerra.
Em meio à turbulência, o
mosaico libanês está mais uma
vez à beira da implosão? "Uma
guerra civil acontece quando as
comunidades têm contas a
acertar umas com as outras",
diz o historiador Salibi, que no
momento, apesar das tensões,
não vê um quadro como o de
1975. Naquela época, diz, os
cristãos se sentiram encurralados. "Agora é diferente."
Salibi, protestante, mora
num prédio de oito andares em
Beirute que crê ser "um Líbano
em miniatura", com famílias de
quase todas as religiões. "No
fim, é uma questão de boas maneiras. Se você não gosta de
[Hassan] Nasrallah [líder do
Hizbollah], por que xingá-lo
diante de um xiita? Prefiro
pensar que é possível manter
essa convivência no resto do
país."
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