São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

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GUERRA NO ORIENTE MÉDIO

Conflito fermenta rixas sectárias no Líbano

Tensões latentes num país onde o equilíbrio entre as quase 20 comunidades religiosas é frágil ameaçam explodir no pós-guerra

Tanto conciliação quanto guerra civil podem suceder conflito atual, mas segundo especialistas, quadro hoje ainda é diferente do de 1975


MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A BEIRUTE

Cristãos se armam, sunitas costuram alianças e xiitas prometem vingança. Também há cristãos que pregam a união nacional, sunitas que admiram a resistência contra o inimigo e xiitas desabrigados que agradecem a acolhida. Sentimentos contraditórios se misturam no caldeirão religioso do Líbano, em fogo brando desde o fim da guerra civil (1975-90), que agora ameaça entrar de novo em ebulição. Poucos arriscam uma previsão sobre o pós-guerra, mas todos sabem que o sangrento confronto entre Israel e o Hizbollah implicará numa reordenação de forças no frágil equilíbrio político do país. De um pacto de união nacional à eclosão de uma nova guerra, as possibilidades estão abertas.
"Não é esta guerra que me preocupa, mas o que virá depois", diz Mustafah Haiad, membro do Partido Árabe Libanês, do general Ahmad al Khatib, que na guerra civil dividiu o Exército e há dois meses foi acusado de formar uma milícia sunita. "Isso é mentira, mas posso dizer que temos 12 mil homens prontos para pegar em armas em caso de emergência." Por "emergência", leia-se um Hizbollah forte por sobreviver aos ataques de Israel.
Cristãos também se preparam. Em Beirute flutua nos círculos políticos a informação de que o grupo ligado ao ex-líder falangista Samir Geagea recebeu 4.000 fuzis, apesar do forte bloqueio imposto por Israel. Geagea foi o único líder libanês preso por crimes cometidos na guerra civil. Condenado a várias prisões perpétuas, foi solto no ano passado, por força de uma anistia.

Colcha de retalhos
Antes de juntar as peças que formarão o imprevisível quebra-cabeças do pós-guerra, é bom lembrar que o Líbano é a terra das teorias conspiratórias e que cada uma de suas comunidades tem a própria agenda política.
"Não são só teorias, são conspirações reais e permanentes", corrige a analista política Roula Talj, ex-assessora do governo libanês e presença constante nos debates sobre política regional da rede CNN. "O Líbano é o estômago do Oriente Médio. Quando Irã e Arábia Saudita se enfrentam, são os xiitas e sunitas daqui que sofrem a indigestão. O mosaico é tão diversificado que reflete toda a região."
A dificuldade em formar uma identidade nacional está ligada à fragmentação da população libanesa. "O país é historicamente formado por diferentes comunidades religiosas, que ao mesmo tempo têm uma natureza tribal", diz o professor Kamal Salibi, da Universidade Americana de Beirute, um dos mais respeitados historiadores do país. "Você é obrigado a ser leal a seu grupo, mesmo que não seja religioso." A lealdade diminuiu com as exigências da vida moderna, mas segue presente na vida libanesa e sobe à tona em tempos de conflito.
A comunidade com características mais fortes de clã é a dos cristãos, especialmente os maronitas. Derrotados na guerra civil, conseguiram manter-se dominantes graças ao complexo sistema político sectário. Criado após a Primeira Guerra pela França, determina que o presidente seja cristão, o premiê sunita e o presidente do Parlamento, xiita.
"Os cristãos devem a manutenção de seu poder no pós-guerra aos sunitas, que temiam que o crescimento xiita ameaçasse a liberalidade da sociedade", diz Salibi. Segundo ele, os sunitas, em sua maioria, uma burguesia urbana, precisavam dos cristãos para evitar um Estado xiita religioso. "Eles podem até não comer presunto ou beber álcool, mas não querem ninguém lhes dizendo isso."

Garantia legal
A Constituição libanesa reconhece 17 comunidades religiosas, 15 organizadas por leis e decretos. O documento nacional de identidade, que indica a religião do portador, já teve usos sangrentos. "Durante a guerra civil, você podia ser morto ao ter a religião revelada pelo documento", lembra o druso Amin Younes, dono de um café em Beirute. Desde 2000, a religião deixou de constar no documento, mas procedimentos civis continuam separados por grupo, como registros de nascimento, certidões de casamento e de óbito.
"O libanês pode até não gostar da palavra divisão, principalmente em tempos de guerra, mas ele nasce, vive e morre de acordo com as regras de sua comunidade", explica o escritor brasileiro Roberto Khatlab, há 20 anos em Beirute.
Influências se repartem no governo e na mídia. Jornais e TVs são identificados pela afinidade com dado grupo.
De modo geral também é possível identificar a divisão sectária na geografia do Líbano. O sul e o vale do Bekaa, no nordeste, são majoritariamente xiitas. A costa norte, de Beirute a Trípoli, é praticamente dominada pelos cristãos maronitas. Os sunitas estão no extremo norte e em parte da costa. Nas montanhas há os drusos. E a capital é uma grande mistura.
"Até a guerra civil, em Beirute todos viviam mais ou menos juntos. Com a divisão entre leste e oeste, houve uma separação física entre as comunidades", diz Khatlab.
Culturalmente, o Líbano é um país partido entre dois mundos. No ocidental, majoritariamente cristão, muitos preferem falar francês e inglês até em casa, grifes da moda fazem parte do cenário e a vida noturna nada deve a balneários europeus badalados. Na oriental, de predominância xiita, a austeridade religiosa dá o tom.

Cicatrizes
A convivência foi pacífica nos 16 anos desde o fim da guerra civil, mas entre os que vivenciaram os horrores da violência sectária as feridas não cicatrizaram. Um exemplo é o cristão Samy Zarhal, 61, dono do Rock Inn, que ele garante ser o primeiro "night club" de Beirute. Em 1983, Samy foi seqüestrado por militantes xiitas e ficou dez dias num cubículo levando surras, incomunicável. "Jamais vou esquecer ou perdoar. São pessoas terríveis."
E se Israel avançar até Beirute, como em 1982? "Não tenho problema com os israelenses. São ocidentais, como nós, dá para dialogar", diz Samy.
As tensões religiosas se misturam às desigualdades sociais e delas se alimentam. Os xiitas formam a maior parte da camada de baixo -uma alavanca para o Hizbollah crescer politicamente. Ao preencher o vácuo deixado pelo Estado, com uma ampla rede social de escolas, creches e hospitais, o grupo cimentou seu poder. "O Hizbollah ficou no lugar de um Estado que negligenciou a população carente, em sua maioria xiita", diz o cientista político Hillel Hassan, da UAB.
Se os ressentimentos cristãos vêm da guerra civil, os xiitas são fermentados agora. Enquanto fogem dos mísseis e recolhem os corpos de parentes, os xiitas vêem áreas cristãs intactas. "Os cristãos são racistas, se acham superiores e parece até que gostam de ver o sofrimento xiita", diz o xiita Hassan Ibrahim, vendedor de Bint Jbeil, uma das cidades do sul mais castigadas pela guerra.
Em meio à turbulência, o mosaico libanês está mais uma vez à beira da implosão? "Uma guerra civil acontece quando as comunidades têm contas a acertar umas com as outras", diz o historiador Salibi, que no momento, apesar das tensões, não vê um quadro como o de 1975. Naquela época, diz, os cristãos se sentiram encurralados. "Agora é diferente."
Salibi, protestante, mora num prédio de oito andares em Beirute que crê ser "um Líbano em miniatura", com famílias de quase todas as religiões. "No fim, é uma questão de boas maneiras. Se você não gosta de [Hassan] Nasrallah [líder do Hizbollah], por que xingá-lo diante de um xiita? Prefiro pensar que é possível manter essa convivência no resto do país."


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