São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

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ANÁLISE

Por que Bush não vence hoje

VITOR PAOLOZZI
DA REDAÇÃO

No primeiro debate, George W. Bush e John Kerry não disseram rigorosamente nada diferente do que já vinham apregoando em entrevistas e comícios. No segundo debate, chegaram a repetir, palavra por palavra, frases que já haviam usado no primeiro debate.
Não é preciso ter um Ph.D. para saber que hoje à noite Bush vai pela 99ª vez falar que Kerry votou 98 vezes a favor de impostos e que o democrata vai acusar novamente o presidente de não saber fazer julgamentos adequados e de ter cortado impostos somente para os ricos.
Em termos de conteúdo, é quase certo que não haverá surpresas. Tudo o que os candidatos falam em debates é meticulosamente avaliado e ponderado por ele e sua equipe. No jargão dos marqueteiros, isso significa "manter o foco" da campanha. Para Bush, isso quer dizer mostrar ao eleitor que Kerry é um esquerdista gastador do dinheiro alheio (do contribuinte) que muda toda hora de posição e que por isso é despreparado para exercer a Presidência. O mantra do democrata é rotular Bush como um "trigger-happy" (alguém rápido para apertar o gatilho) que, com seu radicalismo, afoiteza e decisões equivocadas, deixou os Estados Unidos mais inseguros e isolados.
No primeiro debate, Bush gaguejou, perdeu o fio da meada em várias respostas e fez as famosas caretas enquanto Kerry falava. Na verdade, ele foi o Bush de sempre, o mesmo Bush das entrevistas coletivas, dos discursos lidos e dos improvisos.
Bush é muito subestimado pela intelectualidade, mas, assim como Chance (o jardineiro simplório de "Muito Além do Jardim" que torna-se presidente), encontra ressonância em uma parte significativa da população americana. Talvez seja a sinceridade quase impensada com que transmite seu fundamentalismo. Talvez sejam as piadas autodepreciativas que faz, como saber? O que é certo é que não é a troco de nada que alguém ganha duas eleições para o governo do Texas, uma para a Presidência dos EUA e chega na reta final de mais uma campanha com grandes chances de nova vitória -mesmo apresentando como currículo um governo que fracassou na geração de empregos e na Guerra do Iraque.
Bush nunca foi um rei da retórica, pelo contrário. Mas não foi por essa razão que ele perdeu o primeiro debate.
Tão importante quanto a imagem que o candidato passa de si para definir o "vencedor" de um debate é a expectativa que se tem em relação à performance de cada um. Os marqueteiros americanos sabem muito bem disso e não foi por outra razão que antes do primeiro debate protagonizaram um espetáculo ridículo na imprensa: os democratas procuraram enaltecer as capacidades de Bush como debatedor ("Bush jamais perdeu um debate", afirmou Joe Lockhart, assessor de Kerry) e vice-versa para os republicanos ("John Kerry é o maior debatedor desde Cícero", disse o principal estrategista da campanha republicana, Matthew Dowd). A lógica é a seguinte: se você assiste ao debate pensando que Kerry vai ser massacrado e isso não acontece, você acaba achando que ele foi bem.
E aí está a chave para entender por que Kerry foi considerado tão superior a Bush no primeiro debate: a imagem que a mídia americana construiu dele -para a qual os republicanos ajudaram o máximo que podiam com seus anúncios de campanha- era simplesmente irreal. Isso acontece com freqüência: em 1988 especulava-se que George Bush pai era um "wimp" (um banana) e, em 1992, usavam para Bill Clinton o mesmo rótulo que tentam colar agora em Kerry: que era um "flip-flopper" (alguém que muda suas opiniões de acordo com o gosto do ouvinte). Nos dois casos, após Bush pai e Clinton iniciarem seus governos, essas imagens caíram rapidamente no esquecimento.
De Kerry dizia-se que era alguém que não tinha talento para se comunicar ou gerar empatia no cidadão comum. Alguém que, apesar de ter passado 20 anos no Senado, era uma incógnita para a maioria das pessoas. Enfim, alguém sobre quem não se sabia se tinha o que é preciso para ocupar a Casa Branca.
Quando a bola começou a rolar em Coral Gables, o que se viu foi um Kerry seguro, falando com autoridade sobre os assuntos, desfiando dados e fatos de maneira direta, clara e altiva, sem se intimidar. Enfrentando Bush de igual para igual, ele colocou-se no mesmo patamar que o presidente. Conseqüentemente, passou a impressão de que também possui essa intangível "fibra presidencial".
Todos os analistas concordaram que Bush esteve melhor no segundo debate. Bush foi o Bush do primeiro debate, que foi o Bush de sempre: bronco, monocórdico. A diferença é que, em Saint Louis, todos esperavam mais de Kerry, que havia surpreendido no primeiro debate. Como Kerry também foi o mesmo Kerry -seguro e convincente, mas apenas isso-, não conseguiu reproduzir o impacto inicial e, assim, Bush pareceu maior.
Agora, para o debate final de hoje à noite, Kerry entra com um trunfo que ninguém lhe tira: ele já convenceu a maioria de que tem estatura presidencial. Bush, por outro lado, está na defensiva e, como os temas da noite são economia e políticas domésticas -campos em que o democrata pode enumerar uma porção de estatísticas embaraçosas sobre o desempenho do atual governo-, não poderá toda hora ficar repetindo que o mundo está melhor sem Saddam Hussein no poder.
Diante desse quadro adverso, não será uma grande surpresa se Bush tentar colocar na mesa uma das poucas cartas que tem na mão para o debate: mostrar humildade e admitir que errou em algum momento durante os quatro anos de sua Presidência, citando algum caso específico -mas inócuo o bastante para não causar sérios embaraços.
O provável é que o debate seja morno e anticlimático como uma luta de boxe em que os pesos-pesados já conhecem todos os golpes que virão, não são fortes o suficiente para se sobrepujar ao rival e passam o tempo todo se agarrando em "clinches", à espera do gongo final. Para Bush, apenas um improvável nocaute servirá. Um triunfo por pontos valerá como empate. Só que sair do ringue visto como um adversário à altura de Bush, para Kerry, é vitória.


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