São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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Ingerência é maior problema iraquiano, diz analista

Para especialista em questões sectárias do Oriente Médio, ocupação converteu Iraque em campo de confronto de interesses alheios

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Para os xiitas e sunitas iraquianos a prioridade não é o confronto interconfessional, mas questões mais prosaicas, como a segurança e a ineficiência dos serviços públicos.
É o que afirma Hosham Dawod, integrante, na França, do Centro Nacional da Pesquisa Científica e professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Ele acaba de lançar um livro sobre os curdos ("The Kurds: Nationalism and Politics"), o quarto em que aborda questões confessionais e tribais no Oriente Médio.
Dawod acredita que os conflitos internos foram criados pela ocupação americana e que o Iraque se tornou o campo de confronto entre os Estados Unidos e o Irã.
Eis trechos de sua entrevista.

 

FOLHA - O presidente Bush anunciou esta semana que enviaria 21.500 homens ao Iraque. Isso resolverá as tensões?
HOSHAM DAWOD
- Não. É equivocado procurar resolver militarmente um problema que é bem mais político e que os próprios americanos criaram. As disputas interconfessionais não são a ênfase principal. A prioridade de um iraquiano xiita não é destruir um iraquiano sunita. As verdadeiras questões são as ingerências externas que transformam o país em campo de confronto de interesses alheios. Outras questões são a segurança interna, a segurança das fronteiras. Os iraquianos querem segurança para trabalhar, para sair de casa. A sociedade tem hoje carências de uma grandeza desconhecida. Ela precisa de emprego, de desenvolvimento econômico, ingredientes alheios ao antagonismo religioso.

FOLHA - Quais são as prioridades comuns a todas as confissões?
DAWOD
- Além de fronteiras seguras, de um estado eficiente, a da não-ingerência estrangeira, há o combate à corrupção que permita lidar honestamente com o dinheiro do petróleo. A questão da reconstrução do Estado é fundamental. Os serviços públicos entraram em colapso. Não há eletricidade, não há água potável. A ordem pública não é mantida. Com o enfraquecimento do Estado, as comunidades sunitas e xiitas se colocaram sob a proteção de milícias. Não foram as milícias que enfraqueceram o Estado. Foi a invasão americana e os equívocos que ela cometeu.

FOLHA - O Iraque pode ter um convívio democrático entre as comunidades islâmicas, ou isso só é possível com um Estado autoritário?
DAWOD
- Essa convivência pode ser democraticamente equacionada. Há pessoas dentro do Congresso americano que não pensam assim. Acabam justificando indiretamente a ditadura, que, por meio da opressão, colocou para debaixo do tapete questões próprias à convivência entre sunitas, xiitas e curdos. Esse pensamento procura justificar o fracasso da política iraquiana dos Estados Unidos. Por detrás do diagnóstico há a idéia de que a liberdade e a convivência interconfessional são incompatíveis, quando há verdadeira incompatibilidade entre a democracia e interesses externos agressivos.

FOLHA - Há sugestões de divisão do país para resolver os conflitos confessionais. Ela é viável?
DAWOD
- Isso jamais funcionaria. Grande parte do país é habitada por mais de uma comunidade religiosa, e não haveria como dividir essas regiões. Há sobretudo o caso de Bagdá, onde sunitas e xiitas convivem bastante misturados. Um só exemplo: cerca de 30% dos casais bagdalis são interconfessionais, com o marido sunita e a mulher xiita ou vice-versa. Como dividir um país assim?

FOLHA - O sr. se referiu às ingerências estrangeiras. Refere-se ao Irã?
DAWOD
- O Irã tem algumas razões de peso para insuflar as tensões no Iraque. Há a questão da solidariedade religiosa com os xiitas iraquianos. Há também a necessidade, por cinismo ou bom senso, de manter os Estados Unidos sob tensão. Os iranianos também sabem que seriam o próximo alvo caso os americanos fossem bem-sucedidos no Iraque. Creio que os grandes confrontos entre Estados Unidos e Irã ocorrerão no Iraque.

FOLHA - E a Síria?
DAWOD
- Há um forte antagonismo entre Estados Unidos e Síria, em razão da ingerência síria no Líbano, em razão do assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri. Mas há também a Turquia. Caso os curdos iraquianos obtenham grande autonomia política e econômica, o governo turco teme que os seus curdos passem a reivindicar o mesmo em termos políticos e territoriais. A Arábia Saudita também tem interesses. Ela é uma referência para setores religiosos radicais sunitas do Iraque.

FOLHA - O enforcamento de Saddam Hussein provocou um trauma que pode ser superado?
DAWOD
- Saddam foi um ditador indefensável. Mas ele permaneceu uma forte referência política na medida em que os iraquianos deixaram de construir um projeto político de convivência. Mas não podemos exagerar. O enforcamento foi bem mais traumático fora do Iraque do que entre os iraquianos, onde o episódio foi visto como uma revanche dos xiitas contra os sunitas. Eu pessoalmente me oponho à pena de morte e lamento que o processo contra Saddam não tenha sido usado como uma espécie de projeto pedagógico, para que a sociedade iraquiana se reconciliasse com ela mesma.

FOLHA - Qual seria, diante disso tudo, o resumo da história?
DAWOD
- Eu diria que o Iraque é hoje uma cama ocupada por dois sonhadores: os Estados Unidos e o Irã. Mas essa cama só se acalmará se ela for entregue ao sonhador iraquiano, que é aliás o dono dela.


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