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Ingerência é maior problema iraquiano, diz analista
Para especialista em questões sectárias do Oriente Médio, ocupação converteu Iraque em campo de confronto de interesses alheios
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
Para os xiitas e sunitas iraquianos a prioridade não é o
confronto interconfessional,
mas questões mais prosaicas,
como a segurança e a ineficiência dos serviços públicos.
É o que afirma Hosham Dawod, integrante, na França, do
Centro Nacional da Pesquisa
Científica e professor na Escola
de Altos Estudos em Ciências
Sociais. Ele acaba de lançar um
livro sobre os curdos ("The
Kurds: Nationalism and Politics"), o quarto em que aborda
questões confessionais e tribais
no Oriente Médio.
Dawod acredita que os conflitos internos foram criados
pela ocupação americana e que
o Iraque se tornou o campo de
confronto entre os Estados
Unidos e o Irã.
Eis trechos de sua entrevista.
FOLHA - O presidente Bush anunciou esta semana que enviaria
21.500 homens ao Iraque. Isso resolverá as tensões?
HOSHAM DAWOD - Não. É equivocado procurar resolver militarmente um problema que é
bem mais político e que os próprios americanos criaram. As
disputas interconfessionais
não são a ênfase principal. A
prioridade de um iraquiano xiita não é destruir um iraquiano
sunita. As verdadeiras questões
são as ingerências externas que
transformam o país em campo
de confronto de interesses
alheios. Outras questões são a
segurança interna, a segurança
das fronteiras. Os iraquianos
querem segurança para trabalhar, para sair de casa. A sociedade tem hoje carências de
uma grandeza desconhecida.
Ela precisa de emprego, de desenvolvimento econômico, ingredientes alheios ao antagonismo religioso.
FOLHA - Quais são as prioridades
comuns a todas as confissões?
DAWOD - Além de fronteiras
seguras, de um estado eficiente,
a da não-ingerência estrangeira, há o combate à corrupção
que permita lidar honestamente com o dinheiro do petróleo.
A questão da reconstrução do
Estado é fundamental. Os serviços públicos entraram em colapso. Não há eletricidade, não
há água potável. A ordem pública não é mantida. Com o enfraquecimento do Estado, as comunidades sunitas e xiitas se
colocaram sob a proteção de
milícias. Não foram as milícias
que enfraqueceram o Estado.
Foi a invasão americana e os
equívocos que ela cometeu.
FOLHA - O Iraque pode ter um convívio democrático entre as comunidades islâmicas, ou isso só é possível
com um Estado autoritário?
DAWOD - Essa convivência pode ser democraticamente
equacionada. Há pessoas dentro do Congresso americano
que não pensam assim. Acabam justificando indiretamente a ditadura, que, por meio da
opressão, colocou para debaixo
do tapete questões próprias à
convivência entre sunitas, xiitas e curdos. Esse pensamento
procura justificar o fracasso da
política iraquiana dos Estados
Unidos. Por detrás do diagnóstico há a idéia de que a liberdade e a convivência interconfessional são incompatíveis, quando há verdadeira incompatibilidade entre a democracia e interesses externos agressivos.
FOLHA - Há sugestões de divisão
do país para resolver os conflitos
confessionais. Ela é viável?
DAWOD - Isso jamais funcionaria. Grande parte do país é habitada por mais de uma comunidade religiosa, e não haveria como dividir essas regiões. Há sobretudo o caso de Bagdá, onde
sunitas e xiitas convivem bastante misturados. Um só exemplo: cerca de 30% dos casais
bagdalis são interconfessionais, com o marido sunita e a
mulher xiita ou vice-versa. Como dividir um país assim?
FOLHA - O sr. se referiu às ingerências estrangeiras. Refere-se ao Irã?
DAWOD - O Irã tem algumas razões de peso para insuflar as
tensões no Iraque. Há a questão da solidariedade religiosa
com os xiitas iraquianos. Há
também a necessidade, por cinismo ou bom senso, de manter os Estados Unidos sob tensão. Os iranianos também sabem que seriam o próximo alvo
caso os americanos fossem
bem-sucedidos no Iraque.
Creio que os grandes confrontos entre Estados Unidos e Irã
ocorrerão no Iraque.
FOLHA - E a Síria?
DAWOD - Há um forte antagonismo entre Estados Unidos e
Síria, em razão da ingerência síria no Líbano, em razão do assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri. Mas há
também a Turquia. Caso os
curdos iraquianos obtenham
grande autonomia política e
econômica, o governo turco teme que os seus curdos passem a
reivindicar o mesmo em termos políticos e territoriais. A
Arábia Saudita também tem interesses. Ela é uma referência
para setores religiosos radicais
sunitas do Iraque.
FOLHA - O enforcamento de Saddam Hussein provocou um trauma
que pode ser superado?
DAWOD - Saddam foi um ditador indefensável. Mas ele permaneceu uma forte referência
política na medida em que os
iraquianos deixaram de construir um projeto político de
convivência. Mas não podemos
exagerar. O enforcamento foi
bem mais traumático fora do
Iraque do que entre os iraquianos, onde o episódio foi visto
como uma revanche dos xiitas
contra os sunitas. Eu pessoalmente me oponho à pena de
morte e lamento que o processo contra Saddam não tenha sido usado como uma espécie de
projeto pedagógico, para que a
sociedade iraquiana se reconciliasse com ela mesma.
FOLHA - Qual seria, diante disso tudo, o resumo da história?
DAWOD - Eu diria que o Iraque
é hoje uma cama ocupada por
dois sonhadores: os Estados
Unidos e o Irã. Mas essa cama
só se acalmará se ela for entregue ao sonhador iraquiano, que
é aliás o dono dela.
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