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Diplomata da Santa Sé defende diálogo da igreja com o islã
Cardeal Renato Martino diz que atuação conjunta das duas fés é necessária para impor valores como o combate ao aborto
Ex-representante na ONU lamenta guerra no Iraque, mas vê sucesso em evitar que ela fosse vista como conflito cristão-muçulmano
SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL
Um dos homens de confiança
do papa Bento 16, o cardeal italiano Renato Martino, 76, chefia o Conselho Justiça e Paz do
Vaticano, que cuida de direitos
humanos e doutrina social.
Mas é na frente diplomática
que ele passou a maior parte de
seus 50 anos dedicados à Igreja
Católica, numa carreira que
culminou com o cargo de representante do papa João Paulo 2º na ONU (1986 a 2002).
Em visita a São Paulo, onde
ministrou palestras sobre as relações internacionais da igreja,
o cardeal concedeu entrevista à
Folha, na última quarta-feira.
Na conversa, afirmou que os
imigrantes muçulmanos devem respeitar os valores culturais e religiosos do Ocidente,
mas defendeu uma aliança com
os países islâmicos em nome de
causas conservadoras, como a
luta contra o aborto.
FOLHA - Como o sr. reagiu ao fato
de a menção às "raízes cristãs" ter sido retirada do Tratado de Lisboa?
RENATO MARTINO - A Europa
cresceu e se desenvolveu sobre
bases cristãs. Todo mundo admite a influência do iluminismo e da filosofia grega. Por que
não mencionar então o verdadeiro fundamento da Europa?
Era uma referência histórica
necessária. Ficou um vazio.
FOLHA - A presença de imigrantes
muçulmanos ameaça a Europa?
MARTINO - A Europa não produz filhos suficientes nem para
manter o crescimento populacional no zero. Para evitar um
regresso demográfico, cada casal do continente teria que ter
2,2 filhos. Nações como Itália e
Espanha têm em média apenas
1,2 filho por casal. Se continuar
assim, a população italiana baixará de 57 milhões para 50 milhões em 20 anos. Com filhos
em número insuficiente, os europeus precisam da mão-de-obra estrangeira para manterem seu estado de riqueza, progresso e desenvolvimento.
FOLHA - O sr. acredita que haveria
menos problemas se esses imigrantes não fossem muçulmanos?
MARTINO - Sim. Os EUA recebem principalmente mão-de-obra cristã, vinda da América
Latina. Na Europa é diferente.
O que temos disponível é a
mão-de-obra muçulmana. A
única opção para os europeus é
respeitar essas pessoas, que
vêm com uma cultura, uma religião, uma família. Naturalmente, há de se exigir a recíproca. Os imigrantes devem respeitar cultura, religião e hábitos dos países onde se instalam.
FOLHA - Como o sr. rebate as acusações de que o pontificado de Bento 16 está piorando a relação da Igreja Católica com o islã?
MARTINO - Isso não é verdade.
O embaixador do Irã é um
grande amigo meu e eu fui recentemente convidado a ir a
Teerã. Precisamos do diálogo
com os muçulmanos. Em 1994,
eu chefiei a comitiva da Santa
Sé na Conferência da ONU sobre população e desenvolvimento, no Cairo. Se naquela
ocasião nós conseguimos incluir na declaração final uma
cláusula dizendo que nenhum
caso de aborto pode ser justificado como método de planificação familiar, foi em grande
parte graças ao apoio dos delegados islâmicos. Muitos países
estavam a favor do aborto e
queriam generalizar sua legalização. É para esse tipo de caso
que precisamos continuar o
diálogo com o islã.
FOLHA - Qual é a maior frustração
da diplomacia do Vaticano nos últimos anos?
MARTINO - João Paulo 2º foi
muito claro ao condenar as
guerras ao Iraque, a começar
pela primeira, em 1991. À época, eu era embaixador na ONU,
e ele me incumbiu da missão de
evitar essa guerra. Todos os
dias eu ia ao escritório do então
secretário-geral [Javier] Pérez
de Cuellar para tratar do assunto. Um dia, ele me chamou e
disse: "Monsenhor, nossos esforços foram inúteis, a guerra
começa amanhã".
Em 2003, o mundo acompanhou os esforços de João Paulo
2º para evitar a guerra. Ele enviou a Washington o núncio
apostólico e mandou meu antecessor no Conselho de Justiça e
Paz, o cardeal Etchegaray, conversar com Saddam Hussein.
A diplomacia da Santa Sé sabia que Saddam estava disposto
a aceitar as condições da ONU.
Mas um certo país não quis esperar, e a guerra aconteceu. Se
tivéssemos dado ouvidos a
João Paulo 2º, não estaríamos
chorando por tantas vítimas.
Mesmo sem evitar a guerra,
conseguimos fazer com que o
mundo muçulmano não interpretasse essa guerra como um
conflito entre cristãos e islâmicos. Muitas delegações de países muçulmanos foram a Roma
para agradecer a João Paulo 2º.
FOLHA - Como é definida a agenda
externa da Santa Sé?
MARTINO - O Vaticano pratica
uma diplomacia pura, que não
está ligada a interesses materiais. Somos norteados pela
promoção da paz, do diálogo e
da colaboração internacional.
O Vaticano não tem que vender
sapatos ou geladeiras, mas deve
ajudar os países a viver em paz.
FOLHA - Atualmente, qual a prioridade da diplomacia do Vaticano?
MARTINO - Paulo 6º já dizia que
o novo nome da paz é desenvolvimento. A Santa Sé busca alavancar a ajuda dos países ricos
aos pobres. João 23 e João Paulo 2º sempre cobraram que fosse cumprida a promessa, feita
há 34 anos, de que os países ricos doariam o equivalente a
0,7% do seu PIB. Só cinco cumpriram o acordo -Holanda,
Luxemburgo, Dinamarca, Suécia e Noruega. Se as promessas
fossem respeitadas, haveria
menos conflitos.
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