São Paulo, quinta-feira, 14 de outubro de 2010

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ANÁLISE COPIAPÓ

O mais difícil para os mineiros será voltar para casa

As chances de recuperação emocional aumentam na medida em que tenham criado laços sociais sob a terra


EXPERIÊNCIAS EXTREMAS SÃO PROFUNDAMENTE TRANSFORMADORAS. O QUE ERA IMPORTANTE DEIXA DE SER. JÁ NÃO SÃO OS HOMENS QUE SAÍRAM DE CASA PARA TRABALHAR

MARION MINERBO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma situação traumática como a que viveram os mineiros chilenos pode produzir danos emocionais, mais, ou menos, irreversíveis.
Entretanto, não é a magnitude do sofrimento em si -em termos "absolutos"- que importa, e sim como ele foi, está sendo e será elaborado ao longo do tempo. É isso que faz a diferença entre ficar capturado na/pela experiência traumática, e a possibilidade de tocar a vida em frente, incorporando-a como parte da própria história.
Individualmente, podemos ter mais ou menos recursos psíquicos para lidar com situações difíceis. Mas quando se trata de situações extremas, a ajuda externa é imprescindível. Não me refiro apenas à ajuda que receberão sobre a terra, mas principalmente à ajuda que puderam se oferecer uns aos outros sob a terra.
Em "Ensaio sobre a Cegueira", Saramago descreve o estado de barbárie a que a situação de privação e sofrimento lançou aquelas pessoas. Ao sofrimento da cegueira somava-se o desespero da solidão e o terror da falta de lei.
As chances de recuperação emocional dos mineiros aumentam na medida em que tenham sido capazes de se organizar numa comunidade. O laço social é fundamental para a elaboração das experiências de vida em geral, e mais ainda de uma situação traumática.
Uma comunidade se constitui quando algumas regras são instituídas e seguidas, visando o bem comum. Talvez tenha sido possível também criar alguma rotina, uma mínima divisão de tarefas.
Espero, sobretudo, que tenham conseguido conversar.
Sobre as possíveis causas do acidente; sobre os pequenos fatos de seu dia a dia; comentar as notícias que chegam de fora, falar das experiências de vida de cada um; contar histórias, partilhar momentos significativos, descobrir afinidades, criar intimidade; falar da família, dos amigos; da morte e da esperança de saírem vivos. E de como viveriam se tivessem uma segunda chance.
Experiências extremas são profundamente transformadoras. O que era importante deixa de ser. Surgem outras prioridades. Já não são os homens que saíram de casa para trabalhar. Tivemos notícias das brigas mesquinhas e fúteis entre as famílias que esperam seus homens. Talvez eles venham a descobrir que não partilham mais os valores de quem não viveu na pequena comunidade subterrânea. E que, apesar da imensa alegria, o mais difícil é voltar para casa.


MARION MINERBO , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Neurose e Não-Neurose" (Casa do Psicólogo)


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