São Paulo, sábado, 15 de abril de 2006

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ARTIGO

Somos indulgentes demais para com Israel?

SHLOMO SAND

O resultado das eleições palestinas despertou críticas na quase totalidade das capitais ocidentais que, no entanto, receberam com satisfação os resultados das eleições israelenses. O fato de muitos israelenses terem exprimido seu cansaço com os longos anos de ocupação de territórios palestinos pode ser visto como uma evolução nessa "Guerra dos Cem Anos" dos tempos modernos.
A opção política do povo palestino é desqualificada por porta-vozes americanos, em razão da disposição de os vitoriosos nas urnas não reconhecerem o Estado de Israel. É em verdade um problema. Mas qual é a novidade?


É urgente pôr fim à ocupação e é preciso vacinar o Estado de Israel contra o vírus racista que ameaça contaminá-lo


Nos últimos 40 anos todos os governos israelenses, de direita e de esquerda, autorizaram ou encorajaram o processo de colonização que sempre "morde" um pedaço dos territórios palestinos.
Depois da recusa histórica de Israel de reconhecer, que seja apenas em parte, sua responsabilidade na origem do problema dos refugiados palestinos de 1948, e depois de reduzir a frangalhos o prestígio e a aparência de soberania da Autoridade Nacional Palestina, a população palestina desses territórios submetidos à ocupação optou por uma alternativa ao mesmo tempo mais firme e menos corrupta.
É claro que o Hamas faz um jogo perigoso, e é pouco provável que encontre um apoio durável dos palestinos, particularmente sofridos. Mas o Hamas assume o risco de desafiar Israel e o Ocidente. Ele não rejeitou totalmente a idéia de um reconhecimento bilateral de Israel, condicionando-o no entanto a concessões.
O Estado de Israel, e isso é um fato, jamais reconheceu uma Palestina com as fronteiras anteriores a 1967. Tampouco reconheceu Jerusalém Oriental como capital de um Estado palestino. Qual então seria o motivo para que o Hamas reconhecesse Israel?
Em 1988 os palestinos majoritariamente aceitaram o princípio de divisão da Palestina. Mas Israel não aceitou até agora o princípio do direito palestino à autodeterminação, sem que por causa disso os ocidentais o tenham ameaçado de boicote. Algumas pressões esparsas foram feitas, mas nada que se assemelhasse a uma campanha diplomática pela mídia.
Poderíamos nos perguntar quais as razões que levam os americanos a não serem igualmente tolerantes com o Hamas. As respostas estão nas relações historicamente desequilibradas de Washington com Israel e com os árabes. A Síria se retirou do Líbano após pressões que duraram apenas duas semanas, após resolução do Conselho de Segurança. Paralelamente, no entanto, os EUA ameaçam vetar qualquer resolução que pressione Israel a sair dos territórios ocupados.
Depois de 39 anos de negação dos direitos políticos e humanos de todo um povo, o mundo ocidental e democrático se cala. Bastou o voto dos palestinos em favor do Hamas para que esse silêncio fosse quebrado.
Esses mesmos ocidentais não economizaram palavras para elogiar Ehud Olmert, da mesma forma com que quase beatificaram seu predecessor, Ariel Sharon. Ambos são apontados como se tivessem a importância de um Charles de Gaulle. Mas nenhum dos dois se comprometeu a negociar com os palestinos uma paz cheia de concessões.
Muito pelo contrário: Israel constrói um muro de separação, não em seu território, mas no território dos palestinos. Israel se prepara para anexar o setor oriental de Jerusalém. Israel também expulsa a população palestina do vale do Jordão e intensifica sua presença na zona estreita entre os territórios ocupados ao sul e ao morte de Jerusalém, para impedir uma continuidade territorial no futuro Estado palestino.
Apesar de tudo isso, Israel continua a merecer avaliações elogiosas. Por quais razões se incomodar com os princípios da justiça e da igualdade de direitos, se essa política de fatos consumados pela força pode assegurar um novo período de 39 anos de tranqüilidade relativa, com uma quantidade insignificante de terrorismo?
Mas as eleições israelenses não traduziram unicamente a vitória do sentimento de cansaço com relação à ocupação e ao terrorismo mortífero que ela alimentou. O "Estado judaico e democrático", que, segundo sua própria definição, não é uma república para todos os seus cidadãos, mas um Estado para os judeus do mundo inteiro, possui um temor maior: o da evolução da relação demográfica entre judeus e árabes sobre o conjunto dos territórios dos quais se apoderou.
Essa preocupação já provocou a retirada israelense da faixa de Gaza. Ela explica hoje o sucesso do Kadima e a popularidade de seu projeto de "reagrupamento".
A direita "territorialista", que sonhava com um "Grande Israel", está hoje em recuo, diante do avanço de uma direita "etnicista". O partido Israel Nossa Casa, de Avigdor Liberman, do qual os imigrantes russos foram a base eleitoral, quer excluir das fronteiras de Israel as regiões habitadas por árabes-israelenses, para com isso construir um Estado judaico "homogêneo".
Esse partido, que defende abertamente uma limpeza étnica, é beneficiado pela legitimidade na cultura política israelense. Ehud Olmert, o agora primeiro-ministro, convidou-o a integrar seu gabinete, a partir do princípio de que apenas os partidos judaicos e sionistas podem participar de sua coligação. Isso confirma uma realidade de há muito conhecida por todos: o Estado de Israel é democrático apenas para os seus judeus e é judeu para os seus árabes.
Na qualidade de israelense, filho de judeus aos quais foi negado no século 20 o direito de cidadania em razão de sua origem, como eu não deixaria de me escandalizar diante da perspectiva de um Estado judaico "purificado"?
É portanto urgente pôr fim à ocupação e ao cortejo de atos homicidas que ela alimenta. Mas é também preciso vacinar o Estado de Israel contra o vírus racista que ameaça contaminá-lo.

Shlomo Sand é professor de história contemporânea na Universidade de Tel Aviv. Este artigo foi publicado originalmente no "Le Monde".


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