São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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EUA

"Líderes religiosos precisam ouvir a verdade", diz David Clohessy, diretor da Rede de Sobreviventes de Abusos por Padres

Vítima de abuso pede reforma na igreja

PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO

A Igreja Católica precisa de reformas para evitar novos escândalos sexuais envolvendo padres como os que vieram à tona nos últimos meses, sobretudo nos EUA.
A afirmação é de David Clohessy, 46, diretor da Rede de Sobreviventes de Abusos por Padres, fundada em 1989 e que conta com cerca de 4.400 membros nos Estados Unidos atualmente.
"Os líderes religiosos precisam ouvir os leigos e ouvir toda a verdade. Isso é como uma infecção. nenhum médico diz a um paciente: "Vamos limpar 20% ou 60% de sua infecção e esperar o melhor". A cura só acontece realmente quando a infecção inteira é tratada", argumenta Clohessy.
Dos 11 aos 16 anos, Clohessy foi vítima de abusos sexuais, cometidos por um padre que ganhou a confiança da família e passou a levá-lo em viagens. "Costumava ficar em posição fetal chorando histericamente", diz ele.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Clohessy concedeu à Folha, por telefone, de St. Louis.

Folha - Como o sr. avalia a renúncia, anunciada anteontem, do cardeal Bernard Law, responsável pela Arquidiocese de Boston, a mais atingida no escândalo de pedofilia na Igreja Católica dos EUA?
David Clohessy -
Creio que ainda haja muito o que fazer, mas espero que isso ajude de alguma maneira as vítimas a se sentirem um pouco aliviadas. Ao mesmo tempo, as pessoas compreendem claramente que o problema não é Law. Os abusos sexuais de crianças são algo muito mais profundo do que representa um homem ou uma arquidiocese .

Folha - Por que o papa autorizou a renúncia desta vez?
Clohessy -
Ele simplesmente não tinha outra opção. Foi a segunda vez que Law pediu para abandonar o posto [em abril, ele já havia tentado". Com toda essa pressão, o papa não tinha alternativa. Não creio que a oferta de Law ou a aceitação por parte do papa simbolize qualquer mudança.

Folha - O que o sr. espera que a Igreja Católica faça para lidar com o problema?
Clohessy -
Mais do que tudo, os líderes religiosos precisam ouvir os leigos e ouvir toda a verdade. Isso é como uma infecção. Nenhum médico diz a um paciente: "Vamos limpar 20% ou 60% de sua infecção e esperar o melhor". A cura só acontece realmente quando a infecção inteira é tratada. Os processos criminais em Boston e em outros lugares têm de continuar para que haja realmente uma cura.
De qualquer modo, o importante é remover todos os padres acusados de abusos de crianças, contratar profissionais independentes para conduzir as investigações, anunciar publicamente o nome de padres considerados culpados, garantir terapia às vítimas de abusos, promover programas de prevenção em escolas e seminários e organizar "domingos de prevenção", nos quais cada padre explique aos pais que eles devem discutir a questão com seus filhos e convencê-los da importância de denunciar os infratores.

Folha - A Arquidiocese de Boston está analisando a possibilidade de entrar em falência por causa dos processos que vem enfrentando.
Clohessy -
Não creio que isso seja necessário. A não ser que a igreja abra seus arquivos, não temos como saber qual é sua situação financeira. Nos últimos 15 ou 20 anos, pelo menos 15 dioceses ameaçaram entrar em falência. Na maioria das vezes, isso foi feito para desestimular vítimas de procurar a Justiça.

Folha - Por que em geral as vítimas levam tanto tempo para procurar a Justiça?
Clohessy -
Há diversos fatores. Muitas vítimas se sentem culpadas e envergonhadas pelo que aconteceu. Em geral, nós acreditamos que sejamos as únicas vítimas e que o padre vai obter ajuda. Além disso, os líderes religiosos nos encorajam a silenciar sobre o assunto. Com frequência, as denúncias levam anos para acontecer por causa da gravidade do trauma e da posição social do ofensor. Além disso, algumas vezes os sobreviventes não compreendem que estão sendo vítimas de um crime. São crianças que, muitas vezes, não têm noção do mal que lhes foi imposto.

Folha - O sr. usa o termo "sobrevivente" para reforçar a gravidade do abuso? Alguém já morreu por causa disso?
Clohessy -
Sim, infelizmente algumas vítimas não suportam o trauma e se suicidam.

Folha - Não há perigo de casos falsos?
Clohessy -
Sim, mas esse perigo é extremamente pequeno. Só há duas coisas piores do que acusar falsamente alguém. Uma é sofrer abuso sexual e a outra é sofrer abuso e ser ignorado.

Folha - O sr. foi vítima de abusos sexuais?
Clohessy -
Sim, no Missouri.

Folha - O sr. sabe onde está o padre que cometeu esses abusos?
Clohessy -
Ninguém sabe onde ele vive. Desde que eu abri um processo, ele sumiu, e a igreja insiste em que não conhece seu paradeiro.

Folha - Quantos anos o sr. tinha?
Clohessy -
Sofri abusos dos 11 aos 16 anos.

Folha - Como ele se aproximou do sr. e o que fez?
Clohessy -
Ele se tornou amigo de minha família e passou a ser convidado para o jantar ou para uma visita de final de semana... Depois, pediu que eu atuasse mais na igreja, levou-me com ele em algumas viagens, para acampar, navegar ou esquiar nas férias...

Folha - O sr. teve medo de contar à família?
Clohessy -
Sim, eu tentava reprimir as recordações.

Folha - Que tipo de abuso ele cometeu?
Clohessy -
Muitas coisas. Fui abusado, sodomizado. Ele costumava abusar de mim à noite, quando estávamos sozinhos, quando eu estava dormindo ou quando estava prestes a dormir. Eu acordava de manhã e era como se eu não me lembrasse de nada. Eu não dizia nada porque eu não conseguia... Mais tarde, costumava ficar em posição fetal chorando histericamente enquanto me lembrava do que havia acontecido.

Folha - A maioria dos padres comete os abusos longe da igreja?
Clohessy -
Acontecem em muitos lugares, às vezes até na igreja. Mas o padrão mais comum é os padres se aproximarem da família, virarem amigos dela e depois abusarem da criança. Eles não chegam um dia e rasgam a roupa da criança. Isso é extremamente raro. Normalmente, é muito mais sutil. Vários desses padres são muito carismáticos, populares e gentis. E é justamente por isso que os pais confiam tanto neles.

Folha - Qual é a situação nos EUA atualmente?
Clohessy -
A situação é muito mais grave do que qualquer um possa imaginar.

Folha - Quantos padres estão sendo processados nos EUA?
Clohessy -
Entre 4% e 8% dos padres cometeram abusos sexuais, mas um número muito menor está sendo processado. Ao menos 330 padres norte-americanos foram removidos de seu posto ou renunciaram neste ano. Em apenas um Estado, o Kentucky, que não é muito grande, há pelo menos 200 ações judiciais.

Folha - Quais as principais atividades que a Rede de Sobreviventes de Abusos por Padres promove?
Clohessy -
Acima de tudo, oferecemos apoio às vítimas. Nosso objetivo é garantir um lugar seguro onde as pessoas possam conversar, receber apoio e encorajamento. Temos grupos em 30 cidades dos EUA, onde as pessoas podem conversar em segurança.

Folha - O fim da obrigatoriedade do celibato clerical na Igreja Católica poderia ajudar a reduzir o problema, em sua opinião?
Clohessy -
Creio que sim, mas não como uma ação isolada. A obrigatoriedade do celibato clerical leva a toda uma cultura secreta. Falando de forma direta, ninguém pode praticar sexo com ninguém, e muitos homens acabam fazendo as coisas em segredo. Por causa desse segredo, eles não pensam em chamar a polícia ou fazer uma denúncia contra um outro colega que também faz suas coisas em segredo e que abusa de uma criança. Sou contra a obrigatoriedade do celibato clerical, mas não creio que ela explique os casos de pedofilia.

Folha - Quão comuns são esses acordos que oferecem dinheiro a vítimas de abusos em troca do silêncio delas?
Clohessy -
Ainda são muito comuns, infelizmente. É muito difícil alguém reconhecer que tenha sido vítima de um crime sexual, especialmente se estivermos falando de um homem. Creio que muitos desses criminosos tentam fazer sua vítima se sentir responsável. E eles conseguem fazê-las se sentirem assim.

Folha - A maioria das vítimas são homens?
Clohessy -
A maioria das pessoas acredita que homens sofram mais abusos que mulheres, mas o número é mais ou menos o mesmo. Metade dos membros de nossa rede é homem e metade é mulher.

Folha - Qual é a sua opinião sobre Richard Lennon, que vai substituir Law temporariamente à frente da Arquidiocese de Boston?
Clohessy -
Não o conheço muito bem, mas, de qualquer forma, não creio que faça muita diferença. A cultura e a estrutura da igreja é que precisam de reforma.


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