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IRAQUE SOB TUTELA
Em Bagdá, moradores expressam desconfiança sobre o processo desencadeado pela invasão dos EUA
Mil dias depois, iraquianos temem futuro
ESPECIAL PARA A FOLHA
DE BAGDÁ
"Mil dias de ocupação? Não me
interessa o tempo. Importam-me
as conseqüências, e elas estão à
vista", fala Hakim, detrás do balcão de uma lojinha na rua Yafa,
em frente à Zona Verde -a cidadela protegida no local que antes
abrigava a sede do governo de
Saddam, hoje convertida no espaço que abriga a Embaixada dos
EUA e o Executivo iraquiano-,
onde os muros de concreto se
multiplicam.
"Olhe à sua volta", diz ele. Enquanto os candidatos sorriem nos
outdoors e nas faixas que rodeiam
a praça Farduz, na avenida Sadoum, o trânsito da cidade se torna incontrolável. Os agentes encarregados de manter a ordem no
trânsito não dão descanso, e,
diante da "desobediência" de um
motorista, um deles não tem dúvida: saca sua pistola em atitude
ameaçadora.
Filas de até 15 quarteirões de
veículos se formam para conseguir alguns litros de combustível,
que anda tão escasso quanto a
água potável, enquanto homens
em uniformes de camuflagem, sobre picapes brancas do governo
ou da nova polícia iraquiana, numa obscena demonstração de impunidade e poder, ameaçam os
motoristas com suas armas e, aos
gritos, vão abrindo passagem pelas ruas engarrafadas.
Faltando poucas horas para a
eleição que vai escolher um novo
Parlamento por quatro anos, a
operação de segurança se intensifica, e fica difícil distinguir os soldados americanos dos novos militares iraquianos. Estes assumem
a mesma atitude que os americanos, copiando sua postura e até
seus gestos. "É humilhante", resume Nazeh, apesar de integrar as
novas Forças Especiais.
Embora as cifras divulgadas pelo presidente George W. Bush falem em 30 mil mortos no Iraque
desde 20 de março de 2003, quando começou a ocupação, extra-oficialmente fala-se em mais de
100 mil vítimas, em sua maioria
civis. O periódico médico britânico "The Lancet" calculou que o
número de civis iraquianos mortos por causas diretas ou indiretas
ligadas à invasão pode chegar a
150 mil. "Vocês querem um Iraque sem iraquianos? Então terão
que matar a todos nós", diz o comerciante.
Longe do discurso de pacificação e ordem, as torres de vigia de
cimento e as barricadas ganham
mais espaço, a reconstrução é inexistente, e a insegurança é tema de
todos os dias. Aos cortes de energia elétrica a cada duas horas somam-se a escassez de água potável, a falta de remédios, o aumento da pobreza e do desemprego e
o surgimento de novas doenças
decorrentes da carência de infra-estrutura.
"Esse é o preço da liberdade. Temos um caminho pela frente, e o
processo político é uma prova
disso", disse Sinan, jovem cristão
de 23 anos. "Saddam é o pior, e
gosto de Bush por ter nos libertado dele", afirma, fazendo sinal de
positivo com o polegar.
"É verdade que temos alguns
"problemas técnicos'", admitiu há
alguns dias Nadeem Al Jaarabi,
um dos candidatos do Partido Fadila, falando com um grupo de
jornalistas.
Esses "problemas técnicos" se
resumem, segundo informações
baseadas no Crescente Vermelho
iraquiano, entre outros, na situação crítica dos milhares de deslocados em razão das operações militares em Fallujah e Al Qaim, no
aumento do número de casos de
câncer em decorrência do uso de
urânio empobrecido no revestimento de armamentos convencionais e na proliferação das milícias paramilitares acusadas de
promover uma limpeza étnica
contra os árabes sunitas.
Mil dias, 33 meses, dezenas de
milhares de mortos, milhares de
feridos e o testemunho de ex-fuzileiros navais que, num documentário da italiana RAI, revelaram:
"Ouvi a ordem de ficarmos atentos, porque acabavam de usar o
fósforo branco em Fallujah. O fósforo queima o corpo, derrete a
carne até os ossos... Eu vi corpos
queimados de mulheres e crianças... Foi um genocídio, um homicídio em massa." Chega de números, chega de palavras.
(KAREN MARÓN)
Tradução de Clara Allain.
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