São Paulo, quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Em Bagdá, moradores expressam desconfiança sobre o processo desencadeado pela invasão dos EUA

Mil dias depois, iraquianos temem futuro

ESPECIAL PARA A FOLHA
DE BAGDÁ

"Mil dias de ocupação? Não me interessa o tempo. Importam-me as conseqüências, e elas estão à vista", fala Hakim, detrás do balcão de uma lojinha na rua Yafa, em frente à Zona Verde -a cidadela protegida no local que antes abrigava a sede do governo de Saddam, hoje convertida no espaço que abriga a Embaixada dos EUA e o Executivo iraquiano-, onde os muros de concreto se multiplicam.
"Olhe à sua volta", diz ele. Enquanto os candidatos sorriem nos outdoors e nas faixas que rodeiam a praça Farduz, na avenida Sadoum, o trânsito da cidade se torna incontrolável. Os agentes encarregados de manter a ordem no trânsito não dão descanso, e, diante da "desobediência" de um motorista, um deles não tem dúvida: saca sua pistola em atitude ameaçadora.
Filas de até 15 quarteirões de veículos se formam para conseguir alguns litros de combustível, que anda tão escasso quanto a água potável, enquanto homens em uniformes de camuflagem, sobre picapes brancas do governo ou da nova polícia iraquiana, numa obscena demonstração de impunidade e poder, ameaçam os motoristas com suas armas e, aos gritos, vão abrindo passagem pelas ruas engarrafadas.
Faltando poucas horas para a eleição que vai escolher um novo Parlamento por quatro anos, a operação de segurança se intensifica, e fica difícil distinguir os soldados americanos dos novos militares iraquianos. Estes assumem a mesma atitude que os americanos, copiando sua postura e até seus gestos. "É humilhante", resume Nazeh, apesar de integrar as novas Forças Especiais.
Embora as cifras divulgadas pelo presidente George W. Bush falem em 30 mil mortos no Iraque desde 20 de março de 2003, quando começou a ocupação, extra-oficialmente fala-se em mais de 100 mil vítimas, em sua maioria civis. O periódico médico britânico "The Lancet" calculou que o número de civis iraquianos mortos por causas diretas ou indiretas ligadas à invasão pode chegar a 150 mil. "Vocês querem um Iraque sem iraquianos? Então terão que matar a todos nós", diz o comerciante.
Longe do discurso de pacificação e ordem, as torres de vigia de cimento e as barricadas ganham mais espaço, a reconstrução é inexistente, e a insegurança é tema de todos os dias. Aos cortes de energia elétrica a cada duas horas somam-se a escassez de água potável, a falta de remédios, o aumento da pobreza e do desemprego e o surgimento de novas doenças decorrentes da carência de infra-estrutura.
"Esse é o preço da liberdade. Temos um caminho pela frente, e o processo político é uma prova disso", disse Sinan, jovem cristão de 23 anos. "Saddam é o pior, e gosto de Bush por ter nos libertado dele", afirma, fazendo sinal de positivo com o polegar.
"É verdade que temos alguns "problemas técnicos'", admitiu há alguns dias Nadeem Al Jaarabi, um dos candidatos do Partido Fadila, falando com um grupo de jornalistas.
Esses "problemas técnicos" se resumem, segundo informações baseadas no Crescente Vermelho iraquiano, entre outros, na situação crítica dos milhares de deslocados em razão das operações militares em Fallujah e Al Qaim, no aumento do número de casos de câncer em decorrência do uso de urânio empobrecido no revestimento de armamentos convencionais e na proliferação das milícias paramilitares acusadas de promover uma limpeza étnica contra os árabes sunitas.
Mil dias, 33 meses, dezenas de milhares de mortos, milhares de feridos e o testemunho de ex-fuzileiros navais que, num documentário da italiana RAI, revelaram: "Ouvi a ordem de ficarmos atentos, porque acabavam de usar o fósforo branco em Fallujah. O fósforo queima o corpo, derrete a carne até os ossos... Eu vi corpos queimados de mulheres e crianças... Foi um genocídio, um homicídio em massa." Chega de números, chega de palavras.
(KAREN MARÓN)


Tradução de Clara Allain.

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